Será a dimensão fator de sobrevivência de um restaurante? Pode um projeto de restauração sobreviver sem equipas sãs do ponto de vista psicológico? Estaremos disponíveis para enfrentar refeições com dez pratos e quatro horas de duração? Num cenário em que a COVID-19 acelerou a mudança e os desafios colocados, a equipa das Edições do Gosto uniu-se ao consultor em restauração Bruno Azevedo, para refletirem sobre o futuro próximo da restauração.
Para uma escala de tempo curta, um ano, as tendências apontadas são 11 e incluem aspetos como um mundo mais vegetal à mesa, flexibilização do serviço do restaurante em novos (ou não tão novos) formatos, incremento da tecnologia ou o ambiente e serviços descontraídos são a regra.
“Com a retoma gradual da atividade económica, posta em suspenso por uma pandemia, vimo-nos perante a necessidade de reflexão acerca das mudanças. Nasce assim este projeto que queremos anual e crescente na amplitude, em que nos propomos a captar os movimentos de um setor tão crucial para a economia como é o da restauração”, sublinha em comunicado a equipa das Edições do Gosto
“São tendências que acreditamos que venham a marcar a restauração no próximo ano. Em alguns casos, consequência de atos já em curso, noutros casos fruto da pandemia e demais implicações da mesma”, adianta a mesma fonte, concluindo, “linhas fortes que definem a restauração na sua grandeza, enquanto mais um campo de afirmação humana harmonizada com a sociedade, contribuindo; enquanto pedra toque - esperamos nós - a poder inspirar, influenciar a sociedade a desbravar outros caminhos”.
Edições do Gosto é uma empresa especializada em criar modelos de interação entre todos os intervenientes no setor da gastronomia e restauração, fundada pelo gastrónomo e jornalista Paulo Amado.
1- Mundo vegetal 2.0
É a aceleração na viragem verde. Previsível com o aumento de pratos dedicados ao mundo vegetal, evidente face à aceitação crescente de uma alimentação mais sustentável. Mais restaurantes vegetarianos, mais pratos vegetarianos nos menus dos restaurantes que não sejam vegetarianos.
O renomado restaurante Eleven Madison Park, em Nova Iorque, abalou a comunidade mundial da gastronomia ao abolir a proteína animal dos seus menus. Pelo mundo fora outros se inspiraram e anunciaram a inclusão de mais pratos em que os vegetais são o destaque.
Em Portugal, restaurantes de fine dining ou casuais apresentam hoje propostas à carta ou menus de degustação sem proteína animal. Espera-se o crescimento desta tendência que mesmo na restauração tradicional terá eco.
2- Saúde mental das equipas
Com picos de trabalho diários e uma pré-preparação exigente ao nível que as chefias e equipa o definam, os ambientes de trabalho são naturalmente tensos. O que resulta em sobrecargas emocionais e físicas com situações de descontrolo ao virar da esquina. No atual ambiente de pós-pandemia e perante a afirmação crescente de novas e empoderadas gerações, há futuro para construir e passado para esquecer.
As novas equipas de cozinha têm consciência que esta que é uma indústria de pessoas, que precisa delas sãs e a viver uma vida onde a restauração é só uma parte e não o contrário. Não é um tipo de trabalho que se possa fazer à distância, mas é uma atividade que precisa de mais conciliação com a vida pessoal e familiar, pela gestão das remunerações (que na atualidade se constituem como um grave problema que agrava a falta de mão de obra), folgas e horários de trabalho.
3- O restaurante é onde quisermos
O delivery estava em crescendo e o take away já tinha deixado de ser uma possibilidade específica (frango assado, pizzas, hambúrgueres no topo). Fruto das mudanças ocorridas durante a pandemia em que não foi possível durante meses a visita aos restaurantes, os restaurantes foram até casa das pessoas.
Assistimos a um cenário que é o de levar o restaurante para sítios menos habituais e inusitados, quer por parte dos consumidores quer por parte dos chefes e dos proprietários. Isto inclui desde novos restaurantes fora das localizações habituais a pedidos de comida em que o cliente finaliza o prato em sua casa.
4- Gastronomia colaborativa
É um novo momento para a cozinha portuguesa, com grupos informais para a partilha da cozinha em jantares pop-up, sociedades, take overs e eventos. A anterior organização do trabalho nos restaurantes conferia pouca mobilidade aos chefes de cozinha para se organizarem e colaborarem mutuamente. O advento da comunicação massificada e de uma nova geração de atores permitiu incrementar substancialmente a colaboração entre os chefes de cozinha. A oportunidade atual é a partilha de conhecimentos, soluções e práticas, em eventos únicos e especiais.
5- Small is beautiful
Na era da especialização e personalização, a dimensão deixou de ser um fator preponderante para o sucesso de um restaurante. O restaurante é uma plataforma de interação com os consumidores através de um diálogo muito específico relacionado com o seu papel na comunidade. O importante é medir o valor que o restaurante aporta através da sua autenticidade e compromisso com a sociedade.
A pandemia de COVID-19 veio demonstrar as virtudes dos espaços pequenos, como sendo mais ágeis a responder aos problemas. São também financeiramente mais sustentáveis uma vez que exigem menor custo com mão de obra e de operação. A oportunidade nos restaurantes de menor dimensão é a de possibilitar o acesso à restauração de empreendedores com ideias inovadoras e singulares recorrendo a um menor esforço financeiro.
6- Tecnologia sem contacto
Numa atividade em que a proximidade humana sempre se apresentou como fundamental, a pandemia veio consolidar modelos, suportados por tecnologia, que geram uma diminuição de contacto humano. Se é certo que já estavam em curso mudanças fortes que faziam da restauração uma atividade contemporânea na viragem para o digital, o período de sucessivos confinamentos forçou os restauradores a apresentar soluções e os clientes a dar mais uso às mesmas, estimando-se que é uma natural habituação sem regresso.
É hoje possível a reserva de mesa, escolha e pagamento de refeições com pouca intervenção do serviço que caracteriza a hospitalidade. O que representa um desafio, na medida em que a atenção ao cliente é um luxo, disponível ao alcance de formação, disponibilidade, atenção e um sorriso. Coisa que até ver, as máquinas já fazem, mas não com a mesma naturalidade e empatia que nós humanos.
7- Encurtar distâncias
Encurtar a distância entre a origem dos alimentos e o restaurante permite ter um discurso gastronómico inclusivo e fornecer ao consumidor a opção de ao realizar o consumo estar também a contribuir para a manutenção das atividades tradicionais e também para a redução da pegada de carbono. Uma cadeia de fornecimento mais curta permite sinalizar ao consumidor uma maior qualidade do produto e gera segurança no consumidor.Assistimos à oportunidade de sinalizar ao mercado as virtudes do produto local e a possibilidade de o consumidor contribuir para o bem comum.
8- Casual, casual, casual
Casual no restaurante, casual no serviço e casual no consumo. A simplificação permite retirar o acessório e ficar apenas com o essencial nestas três dimensões reduzindo alguma tenção entre formalidade e simplicidade. Muitos chefes de renome mundial gerem restaurantes de fine dining onde a formalidade e a qualidade andam de mãos dadas. Entramos, no entanto, num discurso mais formal, rígido e tendencialmente aborrecido. Menus de dez pratos e quatro horas de restaurante podem ser demasiado para alguns.
Há um extraordinário retirar de formalidade, etiqueta e protocolo ao restaurante, aproximando o ato de comer de uma tarefa mais simples, imersiva e de convivência e hospitalidade, com alguns desafios já apresentados.
9- Mais céu aberto
Durante a pandemia de COVID-19 as esplanadas assumiram um protagonismo essencial em sinalizar segurança aos consumidores.
A alimentação no exterior há muito que sofria de algum preconceito em Portugal. Este facto levou restaurantes e consumidores a negligenciar o potencial da comida a céu aberto.
Paralelamente, com o desenvolvimento do turismo rural e de natureza, aparecem cada vez mais opções de restauração ao ar livre no exterior das herdades, quintas ou turismo rural. E cresce a alimentação ao ar livre, quer seja em forma de esplanadas, piqueniques ou outras atividades.
10- Cozinha e arte
O restaurante é uma plataforma onde se estabelecem diversos diálogos sociais. A relação entre a comida e a arte é uma das menos exploradas. A ideia reside no facto de muitos considerarem que a fruição da arte deverá ser feita de uma forma estandardizada num local previamente criado para esse mesmo efeito. Com a necessidade de relacionar a arte com a sociedade e colocar as pessoas no centro no seu centro, o restaurante aparece como o local perfeito para expor e criar interação com um público ávido de novas experiências, colocando os cozinheiros e toda a restauração como agentes de criação e divulgação artística.
É a altura para combinar instalações, exposições ou demonstrações de criadores em direto com a experiência do restaurante.
11- Cozinha africana
Pela comida nos entendemos e unimos. Portugal tem na sua diversidade humana parte da riqueza cultural e as pessoas de origem africana, portugueses ou não, em boa hora estão a participar mais e melhor num sistema de reconhecimento, fazendo-se assim a mais elementar justiça humana.
As comidas dos países de África são cativantes e intensas e têm um lugar a reivindicar na culinária de Portugal. O atual momento cultural e geracional, irá naturalmente rimar com a restauração que lhe dará corpo, passando a ver-se mais comida africana nas mesas dos restaurantes nacionais.
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