Uma conversa sobre fotografia de alimentos com Paula Casimiro, autora do blogue “My Common Table”, desemboca em muito mais do que uma mera troca de palavras sobre questões de técnica e estilo. O que para Paula começou por ser uma paixão pela cozinha, com assinatura de memórias familiares e de pertença a um território comum [de todos nós] de tradição culinária, tornou-se, hoje, uma atividade com grande expressão artística.
Paula faz mais do que fotografar alimentos, junta-lhes a história, a antropologia, a sociologia, ou seja as qualidades que fazem da alimentação o grande elo entre todos nós. Uma fotografia para esta, também, cozinheira de boa mão, como vai dando mostra no seu blogue, é motivo para refletirmos sobre sustentabilidade alimentar, a beleza singela, embora complexa dos produtos no seu estado puro [repare-se na intricada rede de artérias numa folha de couve-lombarda], os jogos de luz que nos recordam a pintura de mestres flamengos como Johanees Vermeer, o estilo sombrio dos atuais policiais nórdicos.
Um mundo com assinatura muito pessoal que Paula Casimiro nos deixa nesta conversa.
Paula, antes de nos determos na fotografia, gostaria que comentasse a frase que serve de inspiração à sua página “My Common Table”. São palavras de James Beard, um grande cozinheiro norte-americano, "Food is our common ground, a universal experience” [“a cozinha é o nosso território comum, uma experiência universal”]. Resumem o seu trabalho?
A dimensão dos alimentos que mais me fascina é a sociológica e antropológica, que vai muito para além da sua dimensão nutricional, da sua função mais básica que é a de nos manterem vivos e saudáveis.
Se pensarmos bem, os alimentos estão presentes nos momentos de celebração, de alegria, ou mesmo de tristeza. São utilizados como oferenda, partilha com os amigos ou para marcar um momento de tréguas com os inimigos. Diversas religiões incluem alimentos nos seus ritos.
Todos nós temos memórias felizes sobre pratos que marcaram a nossa infância, confecionados em família, ou que experimentámos numa viagem. Apesar da gastronomia de um local estar profundamente marcada pela geografia, tradição e crença religiosa, todas as civilizações e culturas tiveram e têm esta relação muito especial com a comida, o que a torna verdadeiramente universal e, numa altura em parece que estamos a ficar cada vez mais individualistas e intolerantes, esta pode constituir uma base de partilha e de aceitação.
Não raro, é difícil precisarmos o momento em que despertamos para algo. No caso da fotografia na vida da Paula consegue situar esse momento?
Eu sempre gostei muito de fotografia, sobretudo de fotografia documental ou de viagem, embora mais como observadora. Confesso que me sentia intimidada pela complexidade técnica que está por detrás de uma boa fotografia. Numa apresentação a que assisti, o fotógrafo português Joel Santos dizia que uma fotografia é 99 por cento preparação e 1 por cento inspiração. O meu despertar para a fotografia veio, na verdade, com o blogue, ou melhor, depois do blogue “My Common Table”.
Apesar da gastronomia de um local estar profundamente marcada pela geografia, tradição e crença religiosa, todas as civilizações e culturas tiveram e têm esta relação muito especial com a comida
O meu primeiro blogue nasceu como uma espécie de caderno de receitas virtual, sem pretensões de atrair visitantes, sem grande preocupação com o design e sem boas fotografias. A primeira receita que publiquei foi uma boleima de Portalegre, que é a terra da minha mãe, e a fotografia foi tirada com o telemóvel, debaixo da luz do exaustor da cozinha. Essa fotografia cumpriu um objetivo, que era o de representar o aspeto daquele prato confecionado, mas claramente não atingiu um outro muito importante, que era o de “fazer crescer água na boca” e de levar o observador a querer provar aquele bolo.
Ou seja, com a dinamização do blogue, a Paula sentiu necessidade de explorar a fotografia. O que mais a cativa nesta?
À medida que o gosto pelo blogue foi crescendo eu senti a necessidade de melhorar as fotografias que fazia, de modo a fazer mais justiça aos pratos que estava a fotografar. Mas esta necessidade transformou-se numa paixão por si só e que rivaliza com o interesse pela culinária propriamente dita. Tudo na fotografia de alimentos me interessa e me impele a aprender mais e a melhorar: a técnica fotográfica propriamente dita e o controlo da câmara, a composição fotográfica que permite potenciar o interesse de uma imagem e, por fim, o domínio da edição dessa imagem para, então, chegar ao resultado final.
Porquê os alimentos e a confeção dos mesmos em concreto? O que a fascina?
Fascina-me o desafio. Os alimentos contêm vários dos elementos estilísticos que podem fazer uma boa imagem. Neles encontramos cor, texturas, padrões, linhas ou formas, mas para conseguir uma boa fotografia temos que conseguir levar o observador a sentir o desejo, ou mesmo a necessidade, de comer o que está a ver. Ora, a fotografia é unidimensional, no sentido em que capta apenas uma dimensão do objeto que está a ser representado e que aquela que apela ao nosso sentido da visão. Mas os alimentos são igualmente apelativos, senão mais, a outros sentidos, como o do olfato ou o do paladar, e estes não conseguimos fixar numa fotografia, daí o desafio.
Vivemos obcecados com imagens de alimentos. Depois das selfies, este é o tipo de fotografia mais partilhado nas redes sociais, em particular no Instagram. Mas, mesmo no passado, houve sempre interesse por este tipo de registo.
Paula, se olharmos para a cozinha como arte é, talvez, uma das mais efémeras. O que a leva a querer fixar esse caráter efémero em fotografia?
Vivemos obcecados com imagens de alimentos. Depois das selfies, este é o tipo de fotografia mais partilhado nas redes sociais, em particular no Instagram. Mas, mesmo no passado, houve sempre interesse por este tipo de registo. As denominadas naturezas-mortas eram famosas na pintura clássica e estão expostas em museus por todo o mundo; e o pai da fotografia, o inventor francês Joseph Nicéphore Niépce, também captou uma natureza-morta com alimentos no seu trabalho. Aliás, a fotografia é, por definição, a imortalização do efémero. É a fixação de um momento exato, aquele milissegundo em que o sensor de imagem está exposto à luz e que nunca mais vai voltar a ser o mesmo ou igual. A memória tende a esbater-se com o tempo e ao fotografar um alimento estou a fazer com que ela perdure. Vou imortalizar aquele momento para poder usufruir dele, novamente, no futuro, evocando as sensações que ele me deixou em legado.
Há algo nas suas fotografias que nos devolve a luz e ambiente dos antigos mestres de pintura da Flandres. É certo?
De início não foi uma opção estilística intencional. De entre as várias escolas de pintura clássicas da renascença, os pintores flamengos são os meus preferidos, mas não tinha reconhecido a sua influência na minha fotografia até começar a receber alguns comentários que chamavam precisamente a atenção para alguns pontos de similitude, sobretudo na utilização da luz e, em especial, das sombras, naquilo que é designado de chiaroscuro.
É um estilo que agora procuro aplicar de forma mais intencional, sobretudo nos meus projetos fotográficos pessoais, pois a fotografia para clientes tem necessariamente que incorporar aquilo que são os seus objetivos e a sua identidade de marca. A utilização mais dramática das sombras e da luz transmite uma sensação de mistério, que intriga o observador, mas também de conforto, de aconchego e de lar, que é o que eu procuro transmitir com as minhas receitas.
Quais são as suas fontes de inspiração?
Gosto muito de fotografia e acompanho o trabalho de vários fotógrafos, de alimentos e não só, pois é importante ir procurar inspiração também fora do nosso nicho de trabalho específico. O trabalho de outros fotógrafos de alimentos é sobretudo importante para identificar tendências e enquanto objeto de estudo. Quando vejo uma fotografia de alimentos que me cativa particularmente, gasto algum tempo a tentar perceber porquê, se será da tonalidade, do ângulo em que a fotografia foi tirada, da direção da luz ou do tipo de acessório utilizado, por exemplo. Este conhecimento é muito relevante para a identificação e consolidação de um estilo pessoal.
A pintura clássica, os pintores flamengos, em particular Vermeer com as suas cenas da vida doméstica, são também uma fonte de inspiração muito forte. Atualmente não consigo encontrar tempo para ler tanto como gostaria. Mas gosto muito de policiais e, em particular, os policiais nórdicos retratam um ambiente bastante diferente do nosso, mais natural, inóspito e sombrio, que acho igualmente bastante inspirador e que procuro muitas vezes incorporar nas minhas fotografias através da utilização de uma tonalidade de luz localizada mais sobre o lado frio do espectro.
Quando vejo uma fotografia de alimentos que me cativa particularmente, gasto algum tempo a tentar perceber porquê, se será da tonalidade, do ângulo em que a fotografia foi tirada, da direção da luz ou do tipo de acessório utilizado
Há quem diga que os alimentos estão entre os motivos mais difíceis de captar fielmente em fotografia. Concorda? Quais são os principais desafios?
Pessoalmente, considero que os alimentos no seu estado natural, ou seja crus, são bastante fáceis de fotografar. Isto porque têm, de um modo geral, muitos pontos de interesse que podem ser explorados, como cores, formas ou texturas. O problema pode surgir depois de cozinhados. Um exemplo, uma couve-lombarda é magnífica para fotografar: tem várias tonalidades de verde, as folhas sucedem-se em camadas que podem criar efeitos muito interessantes e possuem ainda uma textura cheia de rugosidades. A couve-lombarda crua é interessante mesmo só do ponto de vista visual e táctil, que são os mais fáceis de capturar em fotografia.
Mas, quando eu corto a couve em juliana e a cozo para fazer uma sopa, lá se perde toda a magnificência do alimento no seu estado original. E isto acontece com a generalidade dos alimentos, um peixe fresquíssimo pode parecer seco e sem graça depois de cozinhado e fotografado. Mas, aquela sopa tem outras características que eu quero transportar para a fotografia, como o sabor, o aroma, o conforto de uma refeição quente e familiar num dia frio de inverno, por exemplo. É o tal desafio de trazer, para a fotografia de alimentos, outras dimensões, para além da visual, que são essenciais para envolver e cativar o observador.
O que é para si um bom desafio nesta busca da fidedignidade em relação ao alimento?
O desafio que normalmente coloco a mim mesma é o de procurar minimizar os elementos adicionais que junto na fotografia, recorrendo sobretudo à luz e às sombras para criar contraste e tridimensionalidade. Quero que o alimento seja o herói da fotografia mas que, mesmo assim, existam um contexto e uma história que o complementem e que ajudem o observador a relacionar-se com ele.
Há algum alimento que tenha procurado captar e que seja particularmente difícil?
Os alimentos podem ser realmente difíceis de trabalhar e uma sessão fotográfica neste campo requer planeamento e preparação. Num instante, os gelados derretem, o caramelo solidifica, as ervas frescas murcham e um prato acabado de cozinhar perde esse aspeto e torna-se pouco apelativo. Pratos de forno, como uma lasanha ou algum tipo de empadão, também requerem algum planeamento relativamente aos ângulos que vão ser usados para as fotografias, dado que a parte mais interessante encontra-se escondida sob a camada que está à superfície. Alimentos com tonalidades quentes, na gama dos laranjas e castanhos, porque são cores que não transmitem frescura ou vivacidade, são também muito desafiantes e não nos podemos esquecer que a maioria dos alimentos depois de cozinhados adquire estas tonalidades. Neste domínio, talvez sinta que o maior desafio coloca-se no caso da carne, pois, depois de cozinhada, adquire essa tom castanho e perde muito rapidamente o aspeto suculento.
Sou purista apenas no sentido de procurar não inviabilizar a utilização dos alimentos que estou a fotografar, porque o desperdício alimentar é algo que me incomoda muito.
Há quem aponte à fotografia de alimentos (especialmente a publicitária) o recurso a artifícios para tornar os produtos mais apetecíveis. No caso da Paula, é uma purista?
Sou purista apenas no sentido de procurar não inviabilizar a utilização dos alimentos que estou a fotografar, porque o desperdício alimentar é algo que me incomoda muito. Muitos dos artifícios utilizados na fotografia publicitária com o objetivo de melhorar o aspeto dos alimentos acabam por os tornar impróprios para consumo. Todos os alimentos e pratos confecionados que fotografo para o meu site pessoal são depois consumidos por mim e pela minha família. Contudo, existem alguns truques que não impactam os alimentos da mesma forma e que são muito úteis no momento de fotografar, como salpicar os legumes e frutas com algumas gotas de água para transmitir uma sensação de frescura, ou utilizar palitos para manter evidentes as várias camadas de uma sanduíche, ou ainda usar um pouco de fita-cola para fixar no sítio certo um alimento ou utensílio com uma base mais arredondada.
A Paula também é uma excelente cozinheira. O que nasce primeiro a ideia para uma fotografia com alimentos, ou uma boa receita carregada de carisma fotogénico?
No início do percurso, era a receita que determinava a fotografia. Atualmente, penso que é uma combinação dos dois. Se estiver a desenvolver um projeto pessoal, em que o objetivo é treinar ou melhorar uma técnica fotográfica, vou procurar uma receita que se adeque a esse objetivo.
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