Quando me chega às mãos a recensão deste “A Verdadeira Cozinha Americana” (Colares Editora), vejo na leitura do livro a oportunidade de me redimir de uma perspetiva que sempre senti enviesada, face à mesa do país do Tio Sam. Comer à americana não pode resumir-se a ingerir alimentos sem uso dos talheres, todos eles petiscos com carimbo industrial. Não. Sob estes estratos de cozinha hipercalórica e massificada, contamos mais de dois séculos de história de permutas alimentares e, antes disso, de um território com as cozinhas dos povos nativos e centenas de produtos endógenos. Logo, algo não bate certo no julgamento precipitado de tratar como junk food tudo o que se mastiga do outro lado do Atlântico.
Margarida Pereira-Müller, autora com obras premiadas internacionalmente, recebe-me em sua casa numa amena tarde de primavera. Duas horas de conversa são tempo quanto baste para fazer prova da riqueza dos comeres nos Estados Unidos. Margarida gosta de aceitar causas perdidas. Fá-lo sempre que edita um novo volume seja sobre sabores chineses, árabes ou alemães.
No fundo, o que Margarida faz neste seu mais recente título é um ato de aproximação entre culturas. De nos mostrar que os Estados Unidos são tudo aquilo que vemos no cinema e muito mais. E é neste muito mais que reside parte da verdade presente neste título. Nos EUA há fast food, há obesidade, há cozinha processada em excesso, mas também há cozinhas regionais, com ingredientes locais e com as óbvias adaptações de uma população com 200 nacionalidades e que permuta desde o século XVII. Esta, como percebemos na troca de opiniões aqui transcrita, não é só uma história de índios e cowboys.
Margarida, o que a levou depois de nos apresentar, entre outros, livros sobre a cozinha chinesa e a cozinha árabe, a interessar-se pelos comeres dos Estados Unidos? Não é esta uma cozinha desinteressante e sensabor?
Cozinha insípida não será, basta pensarmos na fast food que incorpora produtos utilizados pela indústria alimentar como intensificadores de sabor. Quando agarro um projeto, gosto de me entregar a causas perdidas. Já antes, depois de ter vivido alguns anos na Alemanha, publiquei um livro para combater a imagem de que ali só se come salsicha e se bebe unicamente cerveja. Por exemplo, é um povo que bebe muito chá. No caso deste meu mais recente título, “A Verdadeira Cozinha Americana”, quero rebater a ideia generalizada de que nos Estados Unidos só se come cozinha rápida. É fácil cairmos no lugar-comum quando não conhecemos verdadeiramente o país. Diria que ficamos presos ao que nos chega através dos canais massificados, nomeadamente através do cinema produzido em Hollywood. Há muitos preconceitos em relação aos Estados Unidos. É um país que, ou se gosta, ou se detesta. Neste caso concreto, o da mesa, como podemos ter uma ideia redutora de um território que recebeu tantas vagas de imigração com a sua cultura e alimentação?
Quando a Margarida nos fala em “Verdadeira” cozinha, refere-se aquela que os americanos consomem dentro de portas, ou está a reportar-se às origens da atual cozinha? No fundo, podemos entender que há algo mais atrás daquilo que os norte-americanos vendem ao mundo.
Sim. Os norte-americanos, de facto, conseguem vender tudo. O bom e o mau. Peguemos num dos seus alimentos mais icónicos, o hambúrguer. Em si, quando produzido com uma boa carne, esta peça não é má. Agora o que lhe acrescentamos ou como o confecionamos já catapulta o hambúrguer para outros campos. Quando me refiro à ´verdadeira` cozinha, faço-o em relação à origem, à sua proveniência. Neste meu livro vai encontrar a pizza nova-iorquina, produto da emigração italiana, os hamburgers que entraram com as populações alemãs, de Hamburgo, os próprios hot dogs, descendendo das salsichas introduzidas pelos germânicos.
Veja-se, não é originalmente cozinha americana, mas já se encontra enraizada no país. O que há de maravilhoso é que, sendo os Estados Unidos uma nação jovem, com cerca de 240 anos, ainda conseguimos traçar toda a linhagem do produto. Num país como Portugal, quase milenar torna-se muito difícil. Dou-lhe um exemplo, o nosso tão querido ensopado de borrego. Originalmente chega-nos dos árabes, era a comida preferida do profeta Maomé.
No fundo, todos ganhamos com estas permutas alimentares, certo?
No território que hoje constitui os Estados Unidos viviam centenas de tribos índias. Quando chegaram os colonos europeus, tiveram de adaptar as suas comidas às condições e produtos das novas regiões que ocupavam. Por exemplo, os colonos que se instalaram na Nova Inglaterra não dispunham de trigo para fazer pão. Na altura, os índios usavam o milho que também se prestava à produção de pão. Nascia o Johnnycake, semelhante à panqueca. Agora, repare neste exemplo português. No século XIX a corte portuguesa vai para o Brasil. Os doceiros não encontram naquele território a amêndoa e substituem-na por coco. Nascia o quindim.
Mesmo quando as práticas culturais nos causam estranheza, encontramos afinidades. Os esquimós do Alasca usam a gordura dos grandes animais, como o alce e os caribus, para fazerem um gelado a que chamam Akutaq. A descrição da confeção não é apetitosa. Mas, pense, quando batemos a nossa nata para os gelados não estamos a usar gordura animal?
A Margarida divide este seu livro publicado pela Colares Editora em cinco regiões. Que critérios seguiu?
Em primeiro lugar por questões de ordem prática. Um capítulo para cada estado tornaria o livro muito denso. Acresce que é comum nos Estados Unidos fazer uma junção de territórios por afinidades culturais. Neste caso, dividi o livro em cinco regiões: a Costa Leste, o Centro Ocidental, a Região Ocidental, o Sul, o Pacífico. É claro que há pratos que são transversais a todas as regiões e inclui-os no livro, como o Sloppie Joe, uma sanduíche de carne picada, o Pulled Pork, carne de porco desfiada, os cinnamon rolls, caracóis de canela, entre outros.
Achei curioso perceber no seu livro que os americanos quando sondados consideram o hambúrguer e o cachorro quente como os símbolos da cozinha norte-americana.
É verdade, num inquérito sobre a perceção do que é a comida tipicamente americana, o hambúrguer, a tarte de maçã e os cachorros quentes lideram. Curiosamente, em casa, o hambúrguer ou a tarte de massa não são os pratos eleitos.
Depois de toda esta investigação em torno da cozinha americana não sente que a conhece melhor do que os próprios nativos?
Há muitos milhões de americanos e não podemos generalizar. É inegável que as cadeias de fast food são muito agressivas e têm um peso enorme nas escolhas dos consumidores. Recentemente deparei-me com um estudo que afirmava que uma criança de cinco anos mais facilmente reconhece o “M” do logotipo do MacDonald´s do que o sinal da Cruz cristã. Há muitos anos que viajo quase todos os anos com a família pelos Estados Unidos e estudo a sua cultura. Nas minhas viagens fui-me informando. De facto, o americano típico médio come muita comida processada. Os próprios livros de receitas incluem, nos ingredientes, muita comida processada. Ou seja, comida que se produz rapidamente e transportável. Há razões históricas para isto. Trata-se do povo que iniciou a conquista do Oeste. Presentemente, no século XXI, é uma sociedade que vive rápido, em casa, no trabalho. Logo, há muitos atalhos na cozinha.
Pode dar-nos um exemplo?
A receita de um bolo dito “caseiro” parte de um bolo instantâneo ao qual se acresce algo. Outro caso: há nos supermercados americanos uma infinidade de cookies com a massa pré-cozinhada. Se for visita para o lanche vão-lhe apresentar uma dessas cookies como home made, ou seja, feita em casa, mas a única coisa que fizeram foi colocar o produto industrial no forno e fatiá-lo. Daí a cozinha proveniente das imigrações ser tão apreciada, por ser feita a partir do produto base.
Mas mesmo neste caso há muitas populações recém-chegadas a perder hábitos alimentares dos países de origem.
A classe baixa americana é constituída por muitos milhões de pessoas. Cidadãos que não têm dinheiro para comprar produtos frescos, pois são caríssimos. Um quilo de laranjas pode custar quatro ou cinco dólares. Sai mais barato comer numa cadeia de fast food. Posso ilustrar a resposta à sua pergunta com um caso recente. Uma família mexicana, toda ela obesa, levava várias horas por dia nos transportes públicos. Não sobrava tempo para a cozinha. Em resultado, comiam no fast food. E repare, apesar de virem de um país com boa cozinha, serem a primeira geração de imigrantes, não perceberam que estavam a cair na obesidade. Tudo isto traduz-se num ciclo. A obesidade traz doenças, não há dinheiro para tratamentos, agudizam-se as doenças e a alimentação mantém-se errada. É claro que os filhos desta família deixarão de ter referências em relação à cozinha dos ascendentes.
Há um forte sentido de comunidade nalgumas destas cozinhas. Refere, por exemplo, as regiões centrais, as grandes planícies.
Sim, estamos a falar de uma zona extremamente agreste. As populações tinham de sobreviver, inclusivamente, aos ataques dos índios que defendiam o seu território.
A Margarida apresenta neste seu livro 65 receitas divididas em função das regiões que definiu. Achei curioso ver que em muitos casos a alimentação e a ação comercial e publicitária serem quase indissociáveis. A América embrulha bem o seu produto, concorda?
Nos Estados Unidos se disser que comi chili com carne, os meus interlocutores associam imediatamente que abri uma lata de uma determinada lata e levei o conteúdo à mesa. Ou então, que visitei uma cadeia de fast food.
Em Portugal também temos cozinha típica em lata. Numa das minhas visitas aos Estados Unidos apresentei-lhes o nosso bacalhau cozido com grão e foi muito apreciado. Logo se existe nos nossos lineares é porque tem venda. Se perguntar se o comi, posso dizer-lhe que não [risos]. Ninguém associa um prato de bacalhau a comida enlatada, em extremo associamos as salsichas ou as conservas de peixe.
O que a surpreendeu mais na pesquisa que fez para o livro?
Olhe, por exemplo descobri que a Salada Caesar não tem origem americana, ou que um dos constituintes principais do pequeno-almoço inglês, o feijão, fez uma viagem de Oeste [Estados Unidos] para Leste [Inglaterra] para integrar a primeira refeição do dia.
Fotos gentilmente cedidas por Margarida Pereira-Müller.
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