O auge da paixão da degustação acontece quando o imaginário gastronómico se encontra com o prazer efectivo na prova. Existem imagens de iguarias que ainda não provamos e que temos a certeza que devem ser um sonho, que adoraríamos experimentar, que figuram no nosso imaginário gastronómico. Não é possível dizer qual tem mais força – o imaginário gastronómico (que não é apenas a antecipação do sabor, é também a expectativa do ambiente, da companhia, da música, da história) ou o prazer efectivo na prova. Uma amiga disse-me uma vez que o exponente máximo da “gourman dise” era ficar sentada, sem tempo contado, a ler o livro da “Maison du Chocolat” e a saborear uma caixa de bombons...
Pensando no queijo, quisemos entender melhor a razão pela qual o imaginário gastronómico se aproxima tanto do prazer real quando o saboreamos. Em especial, na companhia de um bom vinho. É que imaginamos um acompanhamento perfeito para o vinho e lembramo-nos quase sempre do queijo.
Sem explicações científicas, sabe-nos bem ir saboreando queijo com umas fatias de pão, ou mesmo sem este, e sorvendo golos redondos de um bom vinho.
Há definitivamente algo mais do que apenas um hábito – a boca não é ingénua, nem se deixa convencer (apenas) pelo imaginário gastronómico. Uma grande parte das papilas gustativas tem de votar a favor para que o resultado seja um prazer imenso. Mas há mais: queijo e vinho identificam-se como um tempo de paragem no quotidiano enquanto se saboreia e bebe. Além disso, é eminentemente um prazer social. Segundo o enólogo Manuel Vieira, existe mesmo uma relação histórica entre a pastorícia, o queijo, o vinho tinto e o pão, embora radique num preconceito a associação preferencial do queijo ao vinho tinto:
“O tinto é errado, por natureza, para ligar com o queijo”. Não querendo ser radical, Manuel Vieira explica que os taninos, mais presentes nos vinhos novos, perdem-se geralmente com a acidez e a gordura do queijo. Por isso aconselha a que um vinho tinto novo, de fortes taninos, não seja provado com um queijo igualmente forte e novo. Todavia, a História poderá comprovar que, em tempos idos, era com vinho tinto, mas envelhecido, que se acompanhava o queijo – criando-se assim um equilíbrio imenso, pois o vinho terá entretanto adquirido aromas terciários e um “bouquet” que se harmonizam com o queijo de forma assaz completa. Actualmente, porventura por motivos comerciais, os tintos aparecem no mercado desde novos. A avidez e curiosidade de experimentar os vinhos mal saem, ainda jovens, é causa directa dessa antecipação. A verdade é que outras combinações existem, aparentemente mais adequadas, por exemplo quando juntamos um queijo untuoso e picante, com uma certa cura, a um branco mais velho – das melhores ligações que Manuel Vieira tem experimentado.
Em termos gerais, este enólogo considera mesmo que a ligação do queijo ao vinho branco, maduro e com alguma idade, é a ideal. E entende que, por vezes, os casamentos se fazem por complementaridade, outras vezes por contraste, mas nunca por indiferença ou anulação. Uma combinação rainha é o Stilton (queijo que foi buscar a sua designação à homónima aldeia britânica e que remonta ao século XI) com um Vintage, pelo açúcar do Porto e pela força do álcool – aqui, por exemplo, funciona a lei do contraste. Já um mecanismo mais complicado será o de apreciar um champanhe com queijo, provavelmente algum de pasta mole, de leite de vaca, embora se trate de uma ligação que pode surpreender. Na opinião de Manuel Vieira, contudo, não deverão existir demasiadas regras, ou correremos o risco de não aceitar de safios que nos podem levar mais longe na descoberta da combinação ideal.
Revista Wine/Texto: Isabel Sottomayor: Fotos: IMATEXTO/IMTX
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