
Para quem nasceu nas décadas de 1940, 1950 ou 1960, provavelmente tem memória de ouvir na televisão ou ler pela primeira vez nas páginas de revistas e jornais o slogan da L’Oréal Paris ‘Porque Eu Mereço’ (em inglês ‘Because I’m Worth It). Esta foi criada por Ilon Specht, uma jovem norte-americana de 23 anos, que trabalhava como copywriter na agência publicitária McCann. O objetivo era criar um slogan para a linha de coloração capilar Préférence, que era a mais cara da marca francesa, e reforçar a ideia de que as consumidoras femininas mereciam cuidar de si e investir em rotinas de autocuidado premium que as fizessem sentir especiais. Lançado em 1971, estas quatro "palavras mágicas" vieram desafiar as normas do mundo publicitário ao colocar a mulher no centro da publicidade e passar uma mensagem que, até essa data, nunca tinha sido feito por nenhuma marca: que o seu valor vai muito além da beleza.
Ao invés de contribuir para potenciais inseguranças, promover padrões de beleza irreais ou oferecer soluções rápidas e milagrosas para problemas femininos que têm o objetivo de levar ao consumo de determinado produto, a L’Oréal Paris destacou-se por conseguir criar um slogan publicitário que, sem perder o seu cariz comercial, tinha por base uma mensagem positiva centrada na promoção da autoconfiança e autoestima. Para a psicóloga Joana Gentil Martins, a mudança de paradigma gerada por esta tagline, cujo efeito ainda é possível sentir nos dias de hoje, é aquilo que a torna tão especial. “Tem a ver com esta questão de colocarmos o valor da pessoa intrínseco e não extrínseco, ou seja, darmos valor a quem nós somos, que merecemos autocuidado e não tanto termos de ser igual a alguém ou corresponder a um certo padrão para podermos ser aceites, valorizadas ou ter sucesso”, explica ao SAPO Lifestyle sobre o tema.
Apesar das transformações significativas que marcaram a indústria publicitária ao longo dos últimos anos, onde a divulgação de mensagens mais autênticas e de “anúncios bastante positivos” que promovem uma imagem mais realista do sexo feminino, a psicóloga clínica considera que, “cada vez mais, as marcas devem ter uma responsabilidade social acrescida nas mensagens que veiculam.” Em causa está o impacto profundo que este tipo de narrativas e representações tem na autoestima e autoimagem de quem as ouve e lê. “Se tivermos sempre mensagens mais positivas como ‘cada pessoa é única’, ‘o nosso valor está em nós’ e não ser uma coisa pela qual temos de correr atrás, isso vai ajudar muito na construção da autoestima. Como esta vai sendo construída desde o momento em nascemos e com base nas relações que estabelecemos e nas informações e ensinamentos que recebemos, tudo aquilo que vamos vivendo vai influenciar a nossa autoestima. Se for melhor, é mais positivo. Se for pior, é mais negativo.”
Mas de que forma é que a mesma mensagem, percecionada em diferentes idades, pode impactar os comportamentos, atitudes e autoestima da mulher? Devido às mudanças físicas, emocionais e sociais que marcam a fase da infância e da adolescência estas são as fases do desenvolvimento humano mais preocupantes e que merecem mais atenção. Joana Gentil Martins observa que os pais devem ter um papel ativo na desconstrução e interpretação deste tipo de mensagens junto dos mais novos. “A mensagem, dada em diferentes idades, poderá ter interpretações diferentes, mas até mais do que a idade em si, tem a ver com o nível de autoestima da pessoa no momento em que recebe a mensagem. Como nós nunca sabemos como é que está a autoestima de cada um, porque é algo único e individual, convém sempre que as mensagens sejam boas e positivas.”
Inês Mocho é a prova viva de como a mesma mensagem pode ser interpretada de formas distintas ao longo da vida, salientando a importância da maturidade e do desenvolvimento de um olhar crítico perante este tipo de mensagens publicitárias. “É engraçado porque quando era mais nova eu assumia este ‘eu mereço’ a eu mereço o batom, a laca, a sombra e o perfume. E, hoje em dia, eu entendo que ultrapassa essa barreira. O ‘eu mereço’ é, na verdade, eu mereço cuidar de mim, eu mereço este amor, eu mereço priorizar-me na minha vida e eu mereço tudo aquilo que eu desejo. Por isso a frase ‘eu mereço’ é poderosa, pode ser vista de uma maneira superficial e leve, com os olhos de uma criança, como eu via, mas também pode ser vista de uma maneira intensa e profunda, que eu agora, com a minha maturidade, consigo ver.”
Porque Eu Mereço: muito mais do que um slogan
Traduzido em mais de 50 línguas, este é um slogan que se conseguiu desvincular do seu cariz publicitário e ganhar vida própria. Quem nunca deu por si, em diferentes situações do dia a dia, a utilizar a icónica frase ‘Porque Eu Mereço’? Bárbara Guimarães, que nasceu dois anos após o lançamento do icónico slogan criado por Ilon Specht, refere que esta é uma mensagem que carrega na memória desde a infância. “Eu, literalmente, sempre vivi com este slogan e acho que tem muito impacto porque é de uma humanidade grande. É um slogan, mas é um slogan que nos abraça por dentro. Que pega em ti e diz-te 'Acredita em ti. Cuida de ti' e tu tens de dizer 'Eu mereço' para o fazeres.”
Aos 51 anos, a apresentadora de televisão destaca o impacto positivo que esta mensagem de empoderamento feminino teve ao longo da sua vida — um contraste evidente em comparação com as experiências das gerações da sua mãe e da sua avó — e cujas repercussões ainda se fazem sentir nos dias de hoje. “Com a idade, este mantra está cada vez mais apurado. É quase como o vinho do Porto. Faço uso dele com mais frequência e faço em coisas muito simples, não só de querer um objeto, mas como 'Eu quero ir comer a minha francesinha não sei aonde' e faço quilómetros porque eu mereço.”
Esta é uma ideia partilhada pela influenciadora digital Alice Trewinnard que, apesar da sua rotina agitada, arranja sempre maneira de incorporar este mensagem de valorização pessoal no seu dia a dia através de uma rotina de cuidados que começa de dentro para fora. “Alimentar-me bem e conseguir tirar tempo para mim é muito importante para me centrar em mim mesma. Se não me sinto centrada e alinhada comigo isso acaba por se refletir no meu trabalho, na minha relação com os outros, enquanto mulher, enquanto mãe, enquanto amiga. Depois a maquilhagem e o skincare são, para mim, muitas vezes exercícios meditativos. Eu gosto muito de cuidar de mim e de enaltecer as minhas feições e as minhas características.”
Já Mafalda Sampaio, de 34 anos, sublinha que esta mensagem de empoderamento feminino também passa por libertar as mulheres do papel de cuidadoras que historicamente lhes foi imposto e dar-lhes permissão de se colocarem em primeiro lugar e cuidarem de si próprias, sem culpa. Para a influencer, a máxima ‘nós somos a pessoa mais importante da nossa vida’ é um princípio que procura incutir na educação dos seus filhos. “Eu tenho uma rapariga [Madalena, de 6 anos] e dois rapazes [Francisco, de 3 anos, e Tomás, de 7 meses], e acho que é importante eles saberem que, em primeiro lugar, é importante amarmo-nos para depois dar parte de nós aos outros. Ou seja, não deixar que o amor que temos pelos outros anule o nosso amor próprio.”
Seja enquanto mulher, mãe e atriz, Rita Pereira explica que este é um lema de autocuidado e de empoderamento que tenta incorporar em todos os contextos da sua vida mas que adquire uma dimensão maior no contexto profissional. Com um percurso notório na área televisiva e da moda, a atriz diz que esta mensagem deve servir como um grito de empoderamento para todas as mulheres que devem, cada vez mais, reconhecer o seu valor e acreditar no seu potencial ilimitado no mercado laboral. “Para mim, uma das piores frases que me podem dizer é ‘Foi sorte'. Não. Não, foi sorte. Isto aconteceu porque eu mereço, porque eu lutei, porque eu trabalhei. Esta é uma frase que nos acompanha mesmo sem estar ligada à marca, e que nos acompanha enquanto mulheres, principalmente. Nós estamos aqui porque merecemos, ponto final.”
Mãe de um rapaz, Lonô, de 6 anos, para si é urgente que este tipo de palavras sejam disseminadas especialmente junto do sexo masculino para que, gerações futuras, possam fazer parte da solução e ajudar na construção de numa sociedade mais justa, inclusiva e igualitária. “Esta é uma mensagem extremamente importante de passar aos filhos homens. De que esta mulher conseguiu isto porque ela merece e, acima de tudo, que o pai e a mãe merecem os dois de igual modo.”
A importância da responsabilidade social
Com base na sua experiência pessoal e naquela que é a sua perceção enquanto consumidora, Joana Gentil Martins salienta a evolução que tem sido feita por parte das agências publicitárias que, ao longo da última década, tentaram ser “mais reais e autênticas com as mensagens que transmitem.” Mas a par dos discursos que nos chegam diariamente através da televisão, revistas, outdoors ou muppies, a psicóloga refere que é preciso ter em conta outro player importante nesta dinâmica: o mundo digital e dos influenciadores.
“Enquanto antigamente o que influenciava as pessoas era o que estava nos média, nas revistas e nos jornais, hoje em dia, com as redes sociais, qualquer pessoa pode influenciar outras pessoas e existe muito a divulgação de mensagens que não são filtradas. Não existe esta responsabilidade social, educação e filtro daquilo que é passado às pessoas, principalmente às gerações mais novas.”
Inês Mocho, que começou a sua carreira a partilhar dicas de maquilhagem e de beleza no YouTube, sempre procurou adotar uma postura diferente desde que se aventurou no universo das redes sociais. Com 15 anos de experiência no digital, a influencer e empresária considera que, ao falar para uma vasta rede de seguidores e dado o poder de influência que exerce junto da sua comunidade, é fundamental usar estas plataformas com consciência, responsabilidade e propósito. “Eu acho que, mais do que uma mensagem, cada marca tem de ter o seu manifesto. E é muito importante terem o seu manifesto muito bem definido para nós termos uma ligação mais forte, ou não, com a marca. Cada vez mais, para mim, é muito importante eu ser seletiva nas companhias com quem me dou, da comida que eu como, dos pensamentos que tenho na minha mente e das marcas que eu consumo e apoio.”
Esta é uma ideia partilhada por Alice Trewinnard que sempre demostrou consciência e responsabilidade nas mensagens e conteúdos partilhados diariamente com os seus seguidores através do Instagram, Youtube e TikTok. Por conhecer de perto o lado menos bom desta indústria, acredita que mais do que inspirar e influenciar, parte da sua missão também passa por educar dentro e fora da esfera digital. “Acima de tudo, quero passar aos meus filhos [Tomás, de 1 ano, e Vera, de 3 anos] a mensagem de amor próprio, de que tu és suficiente tal como és, e promover ao máximo a não-comparação que está presente nas redes sociais devido ao acesso à informação que temos hoje em dia e que não havia na nossa era pré-Internet. Portanto, eu acho que nós temos uma responsabilidade acrescida de educar os nossos filhos nesse sentido”, afirma a influencer que, na última década, tem dado cartas no digital através dos tutorias de beleza, maquilhagem e penteados.
Um slogan poderoso que atravessou gerações, que mantém a sua força quatro décadas após o seu lançamento e que, em pleno século XXI, ganha ainda mais relevância tendo em conta os desafios contemporâneos que atravessamos a este nível. Mas de que forma é que conseguimos educar para a autoestima e desconstruir as narrativas que nos dizem que o valor pessoal é indissociável da imagem física? Apesar de não ser uma tarefa fácil, Joana Gentil Martins afirma que o primeiro passo deve começar com a clarificação de conceitos como autoestima, as suas bases e quais os passos para essa construção. Em seguida deve seguir-se um trabalho educativo que deve ser desenvolvido pelos pais em parceria com especialistas da área da saúde. E dá sugestões. “Seria importante os psicólogos e a Ordem dos Psicólogos trazerem este assunto para as próprias redes sociais e existir algum controlo dos pais sobre aquilo que os filhos veem online e as próprias plataformas terem algum tipo de filtro.”
Tendo em conta os efeitos que a exposição a narrativas negativas e conteúdos tóxicos podem ter na construção da identidade, autoimagem e autoestima das gerações mais novas, outra solução passa pelo envolvimento das instituições escolares que também assumem um papel preponderante no desenvolvimento humano. “Poderia ser interessante ter um psicólogo que pudesse ir às escolas e fazer uma educação sobre autoestima, sobre imagem e sobre o cuidado a ter com aquilo que se vê nas redes sociais. Eu acho que desenvolver este espírito crítico é cada vez mais importante”, conclui.
Comentários