Moda e festivais de música andam de mãos dadas há 45 anos. O de Woodstock marcou o arranque de uma relação que foi sempre apaixonada, mesmo antes de ser glamorosa. Dizem que quem realmente viveu os anos de 1960 não se lembra deles e a regra também vale para a década seguinte. Mas como esquecer os lendários hippies quando a cada verão os seus ecos surgem na forma de coroas de flores, franjas e maxi-saias entre a multidão dos festivais de música? Woodstock pode ter sido em 1969, mas, no calendário da moda, marca o início dos anos da década de 1970.

Foi a última e a maior manifestação das flower children antes do cinismo das décadas seguintes. E, tal como uma infância perdida, recordamo-lo com nostalgia ao mesmo tempo que o revivemos em cada novo festival. Uma guitarra grita distorcidos os acordes do hino norte-americano antes de avançar para o tema Purple Haze. Jimi Hendrix, educadamente, canta «Please excuse me before I kiss the sky» e, diante dele, parece que a multidão de cerca de 500 mil pessoas, em puro extâse, está realmente a tentar fazê-lo.

A chuva tinha transformado a quinta de Max Yasgur num grande poço de lama, mas ninguém parecia importar-se. Para a posteridade ficou Jimi Hendrix de fita vermelha no cabelo, casaco de cabedal branco cheio de franjas e jeans à boca de sino, claro. Os fãs que acorreram a Woodstock, bloqueando as estradas com filas de quilómetros de distância, constituíam uma contracultura, eram uma parte da sociedade determinada em mudar o todo. E a estética hippie (ou a falta dela) indicava o caminho para a revolução.

À rigidez dos anos da década de 1950, onde o new look de Christian Dior tinha sido rei e senhor, os hippies contrapunham a liberdade total. Os cabelos rebeldes esvoaçavam ao vento e a roupa deixava de ser uma gaiola para o corpo que agora se movimentava solto e sem constrangimento dentro de peças confortáveis e sem elas numa nudez que tinha tanto de inocência como de desafio. Confrontados com a guerra do Vietname e com a possibilidade de uma guerra nuclear, os hippies queriam voltar à natureza e elegiam os índios como ícones de estilo.

O que é que um elemento da tribo Navajo e um hippie têm em comum? A pergunta pode parecer o arranque de uma piada, mas a resposta é inequívoca… Muito! As flower children retiraram inspiração da estética das tribos de índios norte-americanos da cabeça até aos pés, a começar pelas fitas que usavam no cabelo, aos ponchos, botas de camurça com franjas, padrões e bijuteria. Ah, a bijuteria! Que levante a mão quem nunca usou uns brincos com penas ou uma pulseira de latão com pedras naturais cor de turquesa ou tijolo.

Algures no nosso armário todos temos, pelo menos, uma peça desta estética, sejam uns óculos de sol redondos e coloridos ou uma túnica florida. Não estivemos em Woodstock, mas vivemos sob o seu legado. E, como concluiu Julianne Escobedo Shepherd num artigo para a revista Rolling Stone sobre os 45 anos da ligação entre moda e festivais de música, «ainda que cada festival tenha tido o seu estilo de assinatura, a primeira grande festa da música no exterior ditou o tom. Toda a gente ainda está a tentar recapturar o estilo livre e irreverente das flower children originais», escreve.

Chuva, leite e rock’n’roll

O bilhete diário custava uma libra (aproximadamente 1,30 €) e o festivaleiro tinha ainda direito a um copo de leite de oferta. A primeira edição do Glastonbury, em 1970, realizou-se no dia a seguir à morte de Jimi Hendrix e abriu um novo capítulo para os festivais de música. A Europa experimentava a música ao ar livre nos mesmos moldes que vira os norte-americanos fazerem história com Woodstock. E assim, também em Inglaterra, o local escolhido foi uma quinta, a Worthy Farm, perto de Pilton.

Na estreia daquele que é hoje um dos maiores festivais de música do mundo estiveram 1500 pessoas, um número que atualmente provocará tanta risota como a ideia de consumir laticínios em Glastonbury. As primeiras edições de Glastonbury foram realizadas sob o signo do improviso. Se algo era preciso, arranjava-se maneira de a construir na hora. As pessoas não se vestiam para ir ao evento, aliás, não pensar nisso era o dresscode do festival que se assumia como um sítio livre de qualquer tipo de regras e constrangimentos.

Cabelos (compridos) ao vento

A morte de Jimi Hendrix, em 1970, não foi sinónimo do fim da cultura hippie que se prolongou durante essa década. Em Glastonbury as pessoas ainda dançam sorridentes e semi-nuas enquanto correm por lama e montes. Os cabelos estavam mais compridos, o rock tinha agora sotaque inglês e a ganga estava por toda a parte. As pessoas iam tanto para ver David Bowie e Joan Baez como pela oportunidade de serem livres.

Calções com galochas? A combinação foi cunhada em Glastonbury e na moeda a face é a de Kate Moss. A chuva é presença tão habitual quanto a modelo inglesa que ano após ano usa calções com botas de cano alto (por norma, galochas Hunter) com cinto de cabedal, colete e chapéu de feltro. A actual imagem de marca mostra que as coisas não mudaram assim tanto desde os anos de 1970 no que toca ao estilo dos festivaleiros. Mas o mundo, esse fartou-se de girar.

Dez anos depois da primeira edição de Glastonbury, o Live Aid transmitiu para mais de 100 países e 1,5 mil milhões de espetadores os concertos realizados simultaneamente em Londres, Inglaterra e em Filadélfia, nos Estados Unidos da América. O mundo fez a coreografia do tema «Radio Ga Ga» acompanhando pela televisão Freddie Mercury dos Queen e cantou o refrão de «Heroes» com David Bowie. Do improviso de Glastonbury passara-se para o maior evento televisivo até à data.

Casacos de cabedal em banho-maria

Quando em 1990, Tó Trips, uma das metades dos Dead Combo, foi ao festival Reading, em Inglaterra, o objetivo era ver os The Cramps, a banda punk célebre por temas tão inusitados como Bikini Girls With Machine Guns ou Creature From The Black Leather Lagoon. Tinha 24 anos e, para ver o seu primeiro festival de música, levava «umas calças de ganga, umas t-shirts na mochila e um blusão de cabedal. Precisamente aquilo que tenho vestido hoje». Entre risos, o guitarrista conclui é peremptório. «Não evoluí muito», desabafa.

«Acho que hoje em dia as pessoas vão a um festival para dizer eu estou aqui. Os festivais misturam cada vez mais oferta. Já não é só sobre as bandas, é quase uma celebração, um circo», refere. As novas tribos que tinham nascido nos anos da década de 1970 chegaram ao centro das atenções durante os anos da de 1980. Em Londres, Vivienne Westood foi a madrinha dos punks, lançando a estética a partir da sua loja em King’s Road que tomou o sugestivo nome de Sex.

Nesse mesmo ano, 1974, quatro rapazes de Queens, nos EUA, seriam determinantes para o movimento que se assumiu tão anti-moda quanto anti-sistema. «Lembro-me de passar na Rua do Carmo há muitos anos e ver uma capa de um disco dos Ramones. Olhei para aqueles quatro tipos todos rasgados encostados a uma parede e pensei que curtia ser como esses gajos, meu. Vestiam-se como queriam e faziam o que queriam», recorda Tó Trips. Se os hippies só queriam paz e amor, os punks não queriam saber de nada.

T-shirts rasgadas e cabelos espetados

Tomando a anarquia como bandeira, fariam do artificial e do chocante o seu uniforme. As t-shirts eram rasgadas, os cabelos espetados desafiavam a lei da gravidade e o grotesco cultivado com adereços como tampões, correntes e alfinetes de ama. «Era uma estética que me agradava. Usei botas e cintos de picos», diz o guitarrista dos Dead Combo sobre os seus anos da década de 1980. «Ainda cheguei a pintar o cabelo de vermelho», confessa. Uma tribo urbana após a outra foi chocando com estilos que a multidão progressivamente absorveu e, desde então, cultiva nos diferentes festivais.

A herança dos punks foi sobretudo os casacos de cabedal e as tachas que hoje usamos sem o menor desejo de salvar um membro da família real britânica. «Sempre curti blusões de cabedal, sobretudo em segunda mão», explica Tó Trips antes de partilhar a receita para o look vintage do seu guarda-roupa. «Ponho-os sempre em água quente. Ficam todos quebrados e encolhem, ficam mais justos, mais velhos», diz. Esta técnica, muito coerente com o atual espírito Do It Yourself (DIY), as iniciais de Faça você mesmo, vale tanto para os punks como para a tribo grunge que se lhes seguiu.

Em Reading, tal como em todos os festivais de música, os fashionistas não podem ignorar as condições climatéricas. A chuva e, sobretudo, a lama, dita a supremacia do calçado fechado. Em 1990, os escolhidos eram as sapatilhas All Star e as botas militares. A estética ficava completa com uma camisa à lenhador amarrada à cintura, calças de ganga rasgadas no joelho e cardigans para lá do XL. Para as seguidoras de Courtney Love, mulher de Kurt Cobain e ícone grunge, havia a lingerie visível, os baby dolls e a maquilhagem de quem não tinha dormido na noite anterior, com o eyeliner esborratado e o batom sangue de boi.

Foi este o cenário que Tó Trips encontrou nas suas incursões a Reading, em 1990 e nos dois anos seguintes, a «altura em que rebentou o grunge» e onde assistiu ao vivo aos Nirvana, os reis do novo estilo a par com os Pearl Jam. Em Portugal, foram aparecendo no mapa o Super Bock Super Rock e o festival Paredes de Coura, juntando-se ao já existente Vilar de Mouros. Ainda assim, estávamos fora do roteiro das grandes bandas e de algumas das suas peças de assinatura. «Antigamente, tinhas de cravar quem ia lá fora. Os amigos pediam traz-me uma t-shirt dos Ramones e umas All Star», acrescenta.

De bandas cultivadas por rebeldes, os Ramones e os Nirvana são hoje estampa de t-shirts vendidas a baixo custo em lojas de massas direcionadas para adolescentes que, na sua maioria, nem sequer os ouviu. «De repente, as marcas perceberam que havia ali um nicho de mercado e começaram a fazer isso. Hoje em dia os miúdos não sabem quem foram os Ramones, mas aquilo passa-lhe um mood. É estar na onda. Massificou-se», conclui ainda o guitarrista.

Flores de plástico no vale de Coachella

Senhoras e senhores, estamos prestes a aterrar no Vale de Coachella, no sul da Califórnia, onde o sol brilha mais intenso desde 1999 sobre o mais fashion dos festivais de música. Considerado o the ultimate boho chic playground, Coachella pede coroas de flores artificiais, tops de crochê, malas com franjas, kaftans e botins de camurça. A imagem parece-lhe familiar? A revista Rolling Stone explica afirmando que «Coachella, mais do que qualquer outro festival norte-americano, vive na sombra de Woodstock».

Aqui o estilo hippie é revisitado, mas trazido para o século XXI com novos tons néon, óculos de sol excêntricos, materiais high tech como o neopreno e cores de cabelo arco-íris. Cores de cabelo arrojadas é uma das tendências actualmente mais fortes entre os festivaleiros. Para isso contribuíram tanto a oferta reforçada de cores não permanentes para o cabelo em formato chalk, como as madeixas californianas verdes que Katy Perry usou na última edição do Coachella.

Aqui, todas as tribos se encontram atraídas por um cartaz que na sua última edição, em Maio, teve cabeças tão distintas quanto Lana Del Rey, Motorhead e Skrillex. E o estilo é menos direcionado perante géneros musicais tão diferentes, do hip hop ao folk, do elétrico ao puro rock, combinados no mesmo dia. São assim os festivais dos dias de hoje, uma celebração da música para além de fronteiras de qualquer espécie para atrair todos os tipos de público. A multidão aumentou, o número de palcos também e a moda diluiu-se num easy cool.

As novas tribos

As tribos já não são nichos, mas o estilo de cada um ganhou tanta ou mais importância. Na era do Instagram, do Facebook e de mil outras montras virtuais, a partilha é tão mais valorizada quanto mais peculiar for o visual. Não são só os festivaleiros que divulgam as suas escolhas de guarda-roupa, as revistas de moda também estão lá para encontrar os estilos mais cool. Rubricas de street style põem lado a lado celebridades e desconhecidos cheios de pinta que dão cartas na altura de dar frescura aos conhecidos clichés.

De certo modo, a massificação destes eventos trouxe também a democratização da moda e de algumas das principais tendências dos últimos anos. Peças vintage são conjugadas com outras de marcas conceituadas e novos designers. O resultado? O hipster! Diferente o suficiente para se destacar na multidão e discreto o suficiente para continuar a fazer parte dela. Em comum, a mesma paixão pela música e uma vontade enorme de se divertir.

Texto: Ana Brasil