Não é novidade que aquilo que está mais perto é o que normalmente temos maior dificuldade em ver. É o colega que se sente infeliz no trabalho, uma amiga que finge uma relação feliz ou a cara metade que, afinal, tem tanto amor pelo outro como um elefante por uma formiga. Há coisas que nós, simplesmente, não conseguimos ver. Que, derivado da correria da vida ou da miopia da rotina, nos passam literalmente ao lado – até ao dia em que a realidade nos assola como um verdadeiro balde de água gelada despejada em cima do nosso coração.
Entendo tudo isto. As vidas corridas que nos fazem, tantas vezes, não dar a devida atenção a quem amamos. As preocupações domésticas que nos consomem tempo para o que é menos importante. As responsabilidades desmedidas que nos fazem trocar 15 minutos no sofá por duas horas a responder a emails. Mas não entendo que nada disto – nada – nos torne imunes a quem saiu do nosso corpo. A quem precisa de nós para aprender a viver com segurança, com amor e com estabilidade para, um dia, conseguir enfrentar o mundo ‘lá fora’.
Tenho convivido com uma criança igual às minhas. Com boa saúde, inteligente, com um discurso que poderia já encher plateias. Mas com um coração pequeno e apagado que quase só à lupa se consegue detetar.
Esta criança tem o corpo todo marcado. Não de palmadas, não de quedas no asfalto, mas antes de pequenos cortes que vai infligindo sempre que a dor aperta. A dor da indiferença dos pais resulta numa navalha encostada ao antebraço. A dor do bullying escolar dá lugar a mais um corte no ombro. A dor das más notas resulta em outra marca junto ao pulso.
Os pais não sabiam. E eu pergunto-me como. Como é que os dias corridos nos permitem não olhar para os corpos dos nossos filhos. Como é que as marcas já óbvias e carregadas não são detetadas num toque, num carinho, num abraço.
Tenho muito medo de, algum dia, estar tão precipitada nas agilidades da vida que não consiga reparar nas marcas dos corpos ou dos corações dos meus filhos. Tenho muito medo que esta urgência em ‘fazer’ anule a presença necessária para que um corte se substitua por um desabafo. Por um pedido de conselhos. Por um “dá-me um abraço, que tenho de chorar”.
A criança de quem falo está já a ser acompanhada. Com o conhecimento dos pais e com a suposta presença de profissionais qualificados. Mas como será ela daqui a uns anos? Como ficarão estas crostas – não as do corpo, mas as da alma? E como serão estes pais capazes de viver, a partir de agora, com mais uma responsabilidade acrescida?
Não se trata de uma crítica. Na verdade, é mais um grito de alerta. Ao mundo e a mim mesma, que tantas vezes precipito uma brincadeira com os meus filhos para poder garantir o horário de os deitar.
Porque, nesta pressa – nesta pressa a que a vida nos obriga e que nós consentimos – o tempo passa com cortes e crostas que podem ser irremediáveis. Trazendo corpos e corações retalhados que só olhos atentos conseguem antecipar.
A ela, a esta criança triste que, sem qualquer acaso, se cruzou nas nossas vidas, desejo um caminho presente de vitória, para que no futuro consiga trocar o sorriso apagado pela gargalhada aberta que, infelizmente, ela (ainda) não se arrisca a soltar.
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