
A morte, quando chega de forma tão brutal, desarma-nos. Faltam-nos palavras. Sobra-nos o vazio. O luto é isso: uma dor invisível. É o silêncio que pesa. O lugar vazio à mesa. A ausência que grita no corpo. É uma dor que não se vê, mas que se sente com tudo o que somos. Não sangra, mas corrói por dentro. E a verdade — por mais dura que seja — é esta: não se ultrapassa. Sobrevive-se. Integra-se. Aprende-se a viver com essa ausência, que se transforma numa presença silenciosa.
E é precisamente por isso que é tão importante saber como falar da morte com as crianças. Como nomear a perda sem agravar o trauma. Como proteger sem mentir. As crianças não precisam de eufemismos. Precisam de verdade — dita com ternura. É possível dizer que o/a pai/mãe morreu. É possível explicar que ele/ela não volta, mas que o amor dele/a continua vivo — nas histórias, nas canções, nos abraços que deu, nas palavras que disse. É possível dizer-lhes que sentir saudades é uma forma de amar. Que chorar é permitido. Que perguntar “porquê” é natural. E acima de tudo, que é seguro voltar a sorrir.
No olhar psicanalítico, o luto infantil é um processo de simbolização: a criança precisa de colocar palavras na ausência, de entender a perda com os recursos que tem — emocionais e imaginários. Quando isso não acontece, a dor não desaparece. Apenas se esconde. E volta mais tarde, com outra forma, outro nome, outro sintoma. É aqui que os adultos — mesmo feridos, mesmo em ruínas — são chamados a dar um passo. Não precisam estar prontos. Precisam estar presentes. Porque, como dizemos em psicologia, o trauma não está no que se vive, mas na forma como se é acolhido depois do que se viveu.
Se a mãe está emocionalmente ausente — e é natural que esteja —, é vital que outras figuras afetivas estejam por perto. Avós, tios, padrinhos, amigos. Presenças que ouçam, que abracem, que expliquem. Presenças que digam: “O teu pai morreu, mas o amor dele continua aqui. E eu estou contigo.” A morte leva corpos, mas não pode levar os vínculos — se os mantivermos vivos. O que salva nestes momentos não são grandes discursos. São os rituais. As memórias partilhadas. A história de vida contada ao ouvido da criança. São os valores herdados. É o/a pai/mãe que vive no gesto, na palavra, na forma como se faz o pequeno-almoço ou se conta uma anedota. É esta continuidade simbólica que cura.
Porque a dor não desaparece. Mas pode tornar-se menos pesada e habitável quando é partilhada. E os nossos filhos — mesmo pequenos — conseguem viver com a dor, se souberem que não estão sozinhos nela. Hoje, mais do que homenagear quem partiu, é urgente cuidar de quem ficou. Das crianças. Da Rute. Dos pais. Cuidar sem pressa. Com presença. Com escuta. Com amor. “Os mortos não vivem, mas existem.” referiu sabiamente Auguste Comte. E é nessa existência invisível, mas presente nos nossos corações, que reside o nosso consolo. Porque enquanto houver amor, memória e vínculo... ninguém desaparece por completo.
A morte rouba-nos o corpo, mas não pode roubar o amor construído. E se é verdade que o corpo parte, também não é menos verdade que o que se construiu juntos permanece — na história, nos gestos, na memória do coração de quem continua. E é por isso que, mesmo no luto, ainda é possível amar. Porque o luto, embora solitário, não tem de ser vivido em solidão.
Um artigo do neuropsicólogo e hipnoterapeuta Alberto Lopes.
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