Há cada vez mais bebés a apresentar manchas de gordura no organismo, uma situação que, segundo o cardiologista Fernando de Pádua, exige cuidados acrescidos por parte dos pais. Tem mais de 80 anos e os últimos 60 foram dedicados ao estudo, ao ensino e ao exercício da cardiologia. Fernando de Pádua tem sido o rosto de muitas campanhas de promoção da saúde em Portugal, nomeadamente na redução do consumo de sal, aquela que tem sido uma das suas grandes batalhas.

O laço que usa no lugar da gravata é a sua imagem de marca e um acessório que o acompanha desde os anos 50, quando foi para a Universidade de Harvard, nos Estados Unidos. Em entrevista à Saber Viver falou-nos da sua carreira, bem como da história da cardiologia preventiva em Portugal, na qual desempenhou um papel principal.

Quando decidiu que queria especializar-se em cardiologia?

No meu quarto ano de medicina, quando fui aluno do professor Eduardo Coelho que me ensinou a compreender e a tratar as doenças do sistema cardiovascular. Classificou-me com 19 valores e convidou-me para seu assistente. Não aceitei de imediato, pois ainda não tinha escolhido a especialidade. Mas a verdade é que ele me entusiasmou de tal maneira que, no final do curso, comecei a trabalhar com ele.

Em que consistia esse trabalho?

Colaborava no cateterismo cardiovascular, um exame em que o professor Eduardo Coelho era pioneiro em Portugal, mas muito criticado. Diziam que se tratava de um exame perigoso. Mais tarde percebeu-se que este seria o futuro da medicina e hoje é raro o dia em que não se recorra a esta técnica.

Como surgiu a oportunidade de ir estudar para os Estados Unidos da América?

A minha experiência com o professor Eduardo Coelho, associada ao facto de ter sido o melhor aluno da Faculdade de Medicina no meu ano, permitiu-me ganhar uma das bolsas de estudo atribuídas pela Fundação Rotária Internacional e candidatar-me à Universidade de Harvard. Entrei para um curso de um ano de duração, com oito horas de trabalho diário e 50 professores (entre eles Paul White, o melhor cardiologista americano do século XX) para uma turma de apenas 12 alunos, de todo o mundo, que tinham sido aceites. Aí, especializei-me em cardiologia.

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Que diferenças encontra entre a cardiologia dessa altura e a de hoje?

Está completamente diferente. No meu tempo o exercício da cardiologia andava à volta dos sopros do coração, do aperto mitral, do reumatismo articular agudo, das anginas... Hoje as preocupações são a doença coronária e a hipertensão. Há quase um século, quando o professor Paul White escolheu a cardiologia, muitos o quiseram convencer a desistir, pois era uma especialidade considerada de somenos importância. O que havia naquele tempo eram doenças infecciosas (pneumonia, malária) e raramente eram diagnosticadas outras doenças do coração, para além das cardiopatias valvulares provocadas pela febre reumática.

A que se deveu esta mudança?

Por um lado ao progresso social e aos antibióticos, por outro, ao aparecimento das doenças da vida moderna, as «doenças da abundância» ou, como dizem os americanos, made by man. Durante milhões de anos o homem teve de trabalhar arduamente, para caçar e comer e não existiam máquinas. Nessa altura, ingeriam-se milhares de calorias por dia, mas também se consumiam milhares de calorias. Hoje, continuamos a comer muitas calorias, talvez menos do que antigamente, mas precisamos de muito menos energia.

O ser humano podia até ser apenas um cérebro, pois já não precisa de andar para se deslocar. Toda a gente tem carro e até a televisão se liga com um comando à distância. Como resultado sobram calorias, que se transformam em obesidade, diabetes e hipertensão. Quando curarmos estas doenças provavelmente surgem outras.

Como serão essas doenças do futuro?

Hoje já começamos a ter viroses do coração e doenças degenerativas do miocárdio que não se sabe como surgem.

Quais são as principais inovações dos últimos 50 anos, na área da cardiologia?

Um dos aspetos que mais evoluiu foi a terapêutica cirúrgica. Quando me formei, lembro-me de um homem que entrou de urgência no Hospital de São José devido a uma facada no coração. Naquela altura era inconcebível pensar em cozer o coração. Achava-se que não se podia tocar naquele órgão e afinal hoje pode-se. Até é possível substituí-lo. Mas o avanço que considero mais valioso foi o desenvolvimento da cardiologia preventiva, especialidade que eu quis promover em Portugal quando voltei dos Estados Unidos, mas que inicialmente não foi bem recebida.

Veja na página seguinte: A mudança de mentalidades que se tem vindo a operar

Não foi bem recebida essa abordagem? Porquê?

Não era comum os médicos dirigirem-se às pessoas sãs, para as ajudar a prevenir a doença. No início, ainda cheguei a falar para a comunicação social mas senti que tinha de parar. Dediquei-me então ao ensino, fui assistente da faculdade e fiz o meu doutoramento. E só depois, quando já ninguém me podia acusar de querer protagonismo, é que voltei a dedicar-me à prevenção. Mas ainda passei um ou dois anos a sentir que as pessoas não gostavam daquilo que tinha para lhes dizer.

Quando é que sentiu que houve uma mudança de mentalidade?

Em 1976 ou 77, eu e o professor Pereira Miguel, com quem andava nas campanhas contra a hipertensão, trouxemos a Portugal três homens, grandes autoridades dos Estados Unidos, da Organização Mundial de Saúde e da Escola de Saúde Pública de Londres. Durante mais de uma hora, estiveram em horário nobre da televisão a falar sobre hipertensão e doença coronária, enquanto nós traduzíamos em simultâneo. Como a televisão era recente e só havia um canal, toda a gente viu aquela entrevista. No dia seguinte, o panorama nacional mudou. As pessoas interiorizaram a mensagem.

Em que consiste a cardiologia preventiva?

Compreende todas as actividades que procuram prevenir as doenças do coração e consiste, por exemplo, em chamar a atenção das pessoas para o facto de que o exercício é fundamental para manter o nosso motor ativo e desimpedido, pois o colesterol, os açúcares são mais consumidos com o exercício. Consiste também em chamar a atenção para o facto de a alimentação ser outra causa muito importante de doença, nomeadamente hipertensão, obesidade, diabetes e aterosclerose. E que o álcool por si pode atacar diretamente o coração, provocando cardiomiopatias alcoólicas ou doenças cardíacas congénitas ou que o tabaco pode provocar enfartes do miocárdio.

A quem se dirige esta prevenção?

À população em geral, devendo incidir, nos sub-20, pois quando estamos a pedir para deixar de fumar ou emagrecer estamos a atacar a posteriori.

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Tratando-se de um público especial, de que forma podemos sensibilizar os mais novos para este tema?

Em vez de proibir, devemos dar-lhes esta educação, como lhes ensinamos os caminhos de ferro ou o nome das cidades. Isto para que possam escolher por si, em vez de irem à procura de coisas escondidas que os adultos fazem e não os deixam fazer.

E de que forma desperta os adultos para a mudança de hábitos?

Os adultos receiam que o médico lhes proíba tudo o que gostam, mas há muita coisa de que gostamos e podemos ter, desde que saibamos escolher. Costumo dar o exemplo do Titanic. Aquele barco foi ao fundo porque passou de raspão pelo icebergue. Bastava um desvio de cinco graus para toda aquela gente sobreviver. Faça isso na sua vida e vire os cinco graus. Tire um bocadinho daqui e dali, nas coisas piores, e isso deve dar-lhe mais cinco, dez ou 20 anos de vida saudável. Se deixar tudo o que lhe faz mal poderá dar a volta ao mundo.

Quais os sinais de doença cardiocerebrovascular a que devemos estar particularmente atentos?

Acima de tudo, não devemos esperar pelos sinais, porque os sinais aparecem no fim da picada. A doença básica das doenças cardiocerebrovasculares é a aterosclerose, a degenerescência do interior das artérias. Se os vasos que vão para o cérebro entopem ou rompem dá-se uma trombose ou uma hemorragia cerebral.

Se as artérias que vão para o coração, entopem dá-se a angina de peito ou o enfarte do miocárdio. Se os vasos que vão para os intestinos entopem temos, angina abdominal ou trombose da artéria mesentérica. Esta doença é como o envelhecimento dos canos na nossa casa, começa a desenvolver-se assim que nascemos.

Como assim?

Existem bebés que já têm manchas de gordura, não se sabe se estas desaparecem ou não, mas, por vezes, quando chegam aos 20 anos, aparentemente cheios de saúde, já têm a doença. As artérias entupidas até meio ainda não provocam sintomas, mas através de ecografia é possível ver a aterosclerose e até revertê-la um pouco, se se cumprir rigorosamente os cuidados ligados à dieta, ao tabaco, ao controlo da tensão.

Texto: Vanda Oliveira