Crónica anterior: Gravidez em tempo de pandemia. Quando um vírus se atravessa no nosso dia a dia e muda tudo
O dia 2 de março podia ter sido só mais uma segunda-feira semelhante a todas as outras mas revelou-se uma data importante no calendário dos últimos tempos: foi aí que se confirmaram os primeiros dois casos positivos de COVID-19 em Portugal. No dia seguinte foram mais dois e depois mais e mais e mais, até hoje, sempre a somar.
Nesse dia sentiu-se um ambiente diferente. De repente, aquela (falsa) sensação de segurança, de que tudo estava bem no país e que não havia motivos para alarme, foi por água abaixo. Portugal tinha casos confirmados do novo coronavírus e todos sabíamos que seria apenas o começo de algo que não sabíamos bem como se ia desenvolver.
Também nesse dia as atenções se viraram para mim. Já não me lembro em detalhe desse momento mas, enquanto se dá a confirmação e as últimas horas começam a passar nos rodapés dos canais de notícias, tenho ideia de estar em pé a olhar fixamente para um dos ecrãs que temos na redação e a minha chefe me perguntar: “Já sabes como te deves proteger? Falaste com a tua médica?”.
Sempre defendi que informação é poder. Por isso, quando tenho dúvidas, procuro informação de forma a não ter de lidar com surpresas. Eu sou aquela pessoa que antecipa cenários, sempre
Não tinha falado com a minha médica, isso só iria acontecer cerca de dez dias depois, como contei aqui. Na consulta anterior, quase um mês antes, não me recordo de termos falado sobre isso. Aliás, nessa consulta o tema foi mesmo descobrir o sexo da criança e confirmando o calendário no telemóvel, a 5 de fevereiro estávamos ainda longe de imaginar as proporções que o vírus iria ter, apesar de muito se falar sobre ele.
Passado um tempo, não sei bem quanto, uma colega vem falar comigo: “Estás bem? Estás com medo?”. Tranquilizei-a. A verdade é que não tive medo. Nem no momento da confirmação, nem depois, quando tive tempo de racionalizar sobre o assunto. Felizmente ou infelizmente, naquela altura, já estava a colecionar informação na cabeça, informação que tinha saído no último mês.
No fim de semana de repatriamento dos portugueses vindos da China, eu e o Nuno de Noronha, editor de Saúde do SAPO Lifestyle, estávamos a trabalhar e a acompanhar as atualizações. Desde ali que nunca mais me desliguei do tema. E a verdade é que não havia indícios de que o vírus atingisse as grávidas de forma diferente e causasse danos no desenvolvimento do bebé (como aconteceu com outros surtos, nomeadamente o Zika). Portanto, confiando na informação que existia até ao momento, não tinha razões para me preocupar (mais).
Sempre defendi que informação é poder (acho que foi algum professor da faculdade que disse isso numa aula, não sei precisar quem, mas ficou-me de ensinamento para a vida). Por isso, normalmente, quando tenho dúvidas, procuro informação de forma a não ter de lidar com surpresas. Eu sou aquela pessoa que antecipa cenários, sempre.
Mas tinha de ter cuidado porque o que me coloca num grupo de risco é o facto de ter o sistema imunitário mais debilitado. Já tinha tido três provas nos últimos quatro meses: três gripes, sendo que em duas delas tive mesmo de ficar em casa durante duas semanas a fazer a recuperação. Por isso, se tiver a infelicidade de andar perto de alguém que tenha testado positivo, a probabilidade de apanhar o vírus é alta.
Posso dizer que sou uma pessoa descontraída e neste “estado de graça” o meu comportamento não mudou. Tenho uma amiga que brinca ao dizer que “a Daniela grávida é igual à Daniela não grávida”. E a verdade é que, nesse sentido, não me sinto diferente.
Tenho um ser a crescer dentro de mim e tenho a responsabilidade de o proteger. Mas sem dramas e tentando minimizar as preocupações. Já estamos, de alguma formas, tão limitadas nesta fase das nossas vidas, que se me impuser mais barreiras mentais para ultrapassar, só terei dois trabalhos: preocupar-me e trabalhar para deixar de me preocupar. Eu não sou assim.
Permitam-me que me apresente: Eu, Daniela, mãe de primeira viagem, tenho encarado esta gravidez da forma mais descontraída possível, a descomplicar. Neste momento tudo é uma novidade e até esta situação que estamos a viver é nova e não voltarei a viver algo do género (assim espero).
No entanto, senti-me por alguns dias a viver aquela cena do filme "500 Days of Summer", da expectativa versus realidade, com banda sonora da Regina Spector e tudo.
Expectativa: ser uma pré-mamã cool que ia aproveitar os últimos meses antes do nascimento para passear, viajar muito por Portugal, aproveitar melhor o meu tempo e os momentos a dois.
Realidade: ser uma pré-mamã confinada, que nem deve sair para ir às compras. Não tenho aproveitado o meu tempo a sós - pouca disposição para isso – e momentos a dois é o que mais temos, mas em formato Big Brother – a tal história do 24 sobre 24 horas, em que só quem está lá dentro é que sabe. Isto de cool, tem muito pouco.
Nos dias que se seguiram a 2 de março vários colegas me abordaram, perguntando-me se não estava com receio, se não era melhor ficar a trabalhar a partir de casa, porque é que eu ainda ia ao SAPO todos os dias.
Eu sabia que trabalhar a partir de casa era algo que iria acabar por acontecer, só não sabia quando. Não pensei muito no assunto durante uns dias porque é sempre mais fácil estar junto da equipa do que à distância. Em termos de comunicação é muito mais simples.
Mas percebi na semana seguinte que o risco era iminente depois do episódio do autocarro que relatei na última crónica. O problema ali foi uma falha de carreira, meio caminho para o caos. Senti revolta por mim e por todas aquelas pessoas que tinham de estar ali “acumuladas” porque o serviço podia ser melhor e deixava muito a desejar, sobretudo às horas de ponta.
Nesses dias estávamos cheios de trabalho e não tinha muito tempo – nem energia – para pensar sobre o assunto. Mas quando tive oportunidade de o fazer percebi a sorte que tinha em estar segura, no meu ambiente
Não era um caso isolado, mas era um caso que tomava proporções muito graves num ambiente de propagação de um vírus. Senti raiva naquele momento e vontade de enviar mais um mail a reclamar do serviço. Infelizmente, acabei por não o fazer porque me esqueci e depois perdeu o sentido.
Aí já tinha adotado uma série de medidas de prevenção. Fora de casa tentava tocar o mínimo possível nas coisas, quando chegava ao trabalho ou a casa lavava logo as mãos e comecei a lavá-las várias vezes ao dia: depois de beber café, depois do almoço e depois de estar algum tempo sem lavar as mãos. Em casa já tinha o hábito de descalçar-me logo à entrada.
Não podia continuar a fazer a minha vida normal durante muito mais tempo. Revendo a linha do tempo, os primeiros casos surgiram a 2 de março, uma segunda-feira, o episódio do autocarro aconteceu na segunda-feira seguinte, dia 9, quando em Portugal haviam apenas 39 casos confirmados e fui para casa na quarta-feira, dia 11, quando já se registavam 59 infeções por COVID-19 no país.
Nesses dias estávamos cheios de trabalho e não tinha muito tempo – nem energia – para pensar sobre o assunto. Mas quando tive oportunidade de o fazer percebi a sorte que tinha em estar segura, no meu ambiente. Muitas pessoas que não o podiam fazer. Tenho amigos que continuam a ir trabalhar todos os dias ou porque são profissionais de saúde ou porque os planos de contingência das empresas vão rodando as pessoas. Houve outros casos em que as próprias empresas levaram tempo a adaptar-se a esta nova realidade.
Fast forward
Hoje, posso dizer que eu não sou daquelas pessoas a quem custa estar em casa. Sou uma privilegiada por poder usufruir de um espaço exterior, que me permite fazer pequenas caminhadas dentro de um espaço privado. Não é só o meu bebé que está seguro dentro da minha barriga, eu própria estou num ambiente controlado. Mas começo a sentir outros efeitos colaterais, relacionados com o facto de estar demasiado tempo ao computador. De repente a nossa vida passou para o universo digital: além do trabalho, tenho o curso pré e pós parto por videoconferência, faço compras online e até já tive uma teleconsulta.
Continuo a não ter medo do vírus em si. O que realmente me assusta neste momento é o facto de, enquanto não se descobrir uma vacina, acreditar que o normal é uma realidade paralela que não vamos viver.
E é isso, acima de tudo, que me coloca mais apreensiva no meio desta situação: perceber que vou estar limitada nos meus movimentos não sei quanto tempo e que este ano não há verão, não vou conseguir viver a minha época preferida do ano – as Festas de Lisboa e os Santos Populares (já não ia ser igual, agora não vai haver sequer) – férias fora de casa será apenas um sonho, provavelmente não há praia este ano e depois de a criança nascer… são apenas pontos de interrogação que vejo na minha frente. Para além de todas as consequências sociais e financeiras que iremos viver em conjunto, enquanto sociedade.
E como têm corrido estas semanas em casa? Isso conto-vos na próxima crónica.
Daniela Costa chegou ao SAPO em agosto de 2013, depois de uma passagem por produtoras de televisão em que fez um pouco de tudo: desde programas para a RTP 2 sobre agricultura, pescas e desenvolvimento rural, programas sobre lusofonia, na RTP África ou programas para a RTP Internacional sobre o melhor que se fazia em Portugal nos anos de crise financeira, entre outros. Entrou na equipa do SAPO Lifestyle, em novembro de 2015, e desde fevereiro de 2017 que assume a função de editora.
Comentários