Como se a mama humana tivesse dois níveis de existência: a mama pública, do decote sexy, do bikini em diamantes, da prótese, do lift; e a mama privada, aquela que produz leite. Mas convém relembrar qual é o propósito da mama, certo? Não temos mamas para colocar piercings nos mamilos. Temos mamas porque somos mamíferos. E, por muito desapontante que seja, os mamíferos amamentam as suas crias.
Agora começa a discussão sobre quem não consegue/pode/quer amamentar versus o grupo de mães que conseguiu e quis amamentar. Tudo muito extremado e sem um pingo de peace&love que é realmente tudo aquilo que a mãe e o bebé precisam.
O que sabemos, e sabemos com certeza, é que o aleitamento materno exclusivo nos primeiros seis meses de vida de uma criança tem benefícios que se estendem para toda a vida e que crianças amamentadas durante o primeiro ano de vida têm a melhor nutrição que poderíamos, como mamíferos, providenciar. Disso estamos claros!
Mas depois entramos no capítulo da amamentação quando a criança tem mais de um ano. Franzem-se narizes, trocam-se olhares, lançam-se uns comentários sobre a incompatibilidade entre dentes e mamilos e questiona-se o propósito nutricional do leite materno. Então se a amamentação ultrapassa os 2 anos, aí sim, chovem comentários, com pediatras a dizerem que os miúdos não comem a sopa porque só querem a mama e não dormem seguido porque a mama tem um poder magnético tal que não dos deixa dormir sossegados, e que amamentar depois desta idade, isso sim, é abebezar as crianças.
Mas precisamente porque as mamas das mulheres e a decisão de amamentar para além de um ou dois anos de idade parece ser do escrutínio público, serve este artigo para rever o que se sabe e, idealmente, travar comentários como os que se seguem:
Comentário número 1: “Depois de 1 ano (ou 2, por exemplo) de idade o leite materno já não alimenta nada”
Não existe um momento certo em que possamos dizer que o leite materno seja nutricionalmente dispensável. Quer seja porque nem todas as crianças ingerem a mesma percentagem de leite materno, com algumas crianças a continuarem a alimentar-se com uma quantidade diária moderadamente importante e outras, a ingerir apenas pequenas quantidades.
O que sabemos é que o leite materno mantém-se um produto imunologicamente muito ativo e importante, tendo um papel comprovadamente protetor contra as infeções (sobretudo respiratórias e gastro-intestinais) nas crianças. Se mais nenhum benefício houvesse, com as integrações cada vez mais precoces no infantário e no recém contexto pandémico, este parágrafo por si só, permite justificar perfeitamente a escolha em amamentar para além de um ano de idade.
Comentário número 2: “Isso é só mimo: manter uma criança crescida à mama é torná-la dependente! Isso é vício!”
Pois, ora aí está. Não sei em que ponto concreto uma fonte permanente e disponível de conforto providenciada pela mãe pode cumprir critérios de vício. Vejamos: por vício temos a necessidade imperiosa de consumo de uma substância que, infelizmente, ao longo do tempo, vai perdendo o seu efeito, exigindo a um consumo cada vais mais acentuado da mesma (a tal habituação aos vícios).
Realmente o leite materno não desencadeia nada disto. O que habitualmente acontece é que a criança deixa progressivamente de mamar. E não o contrário! Não conheço crianças em idade escolar viciadas na mama. No entanto, conheço muitos adultos com falta de colo.
E a mama tem um efeito regulador incrível, providenciando colo, presença, disponibilidade, proximidade com a criança... Tudo coisas boas. Sobretudo se pensarmos que outras “dependências” como a chucha para além dos 2 anos, o brinquedo favorito, a fraldinha, o cobertor, não são tão ativamente criticadas.
Reparem, desculpamos uma criança com mais de 2 anos por precisar da chucha como conforto, mas não desculpamos a mesma criança por precisar da maminha. Porquê? A mama é muito mais saudável! Qual é ao certo o nosso problema com as mamas das outras pessoas?
Comentário número 3: “Essa amamentação vai atrasar o seu filho. Vai torná-lo dependente de si e ele não se vai desenvolver harmoniosamente”
Pois claro! Porque o que queremos mesmo é crianças de 2 anos perfeitamente independentes. Mas não muito, porque senão questionam limites e fazem birras. Vá, independetes qb. Quando toca à mama, têm de cortar amarras, mas quando toca a chuchar na chucha ou no dedo, até se tolera.
No entanto, até considero este comentário o menos nocivo dos três. Não no sentido de concordar com ele, mas no sentido de nos alertar para uma situação importante: se nós vemos que uma criança com uma postura de evitamento sistemático do outro, sem relação, sem interesse, sem brincar e a querer apenas mamar (ou chuchar na chucha, ou levar a fralda de dormir para todo o lado), então temos realmente aqui um sinal de alarme. Mas não é a mama em si! É o comportamento global da criança, percebem?
Mas quantos miúdos ficam subitamente envergonhados, agarrados ao seu brinquedo favorito, quando exposto a uma situação nova, de tal forma que nem parecem os miúdos animados e confiantes que são no dia-a-dia? Tantos! E acham que continuam todos a fazer aleitamento materno?
Até que ponto não estamos a querer crianças de 2 ou 3 anos independentes para lá daquilo que elas conseguem?
O que nos diz a Organização Mundial de Saúde e a Academia Americana de Pediatria é relativamente consensual: mãe e criança são os únicos intervenientes que podem decidir quando parar o aleitamento materno. Pelo que, na ausência de oposição da criança, compete apenas e só à mãe, decidir o que lhe apraz fazer!
E por muito que se discutam estes assuntos, por muitos argumentos que se esgrimam, a verdade é que a mama é mesmo um assunto privado.
Um artigo da médica Joana Martins, especialista em Pediatria.
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