As crianças e jovens até aos 18 anos foram identificadas legalmente como vítimas de violências doméstica quando expostos a contextos de violência familiar por força da entrada em vigor da Lei nº 57/2021, de 16 de agosto. Ou seja, o Estado Português acolheu finalmente as orientações da Convenção de Istambul, de 11 de maio de 2011, no sentido de considerar que uma criança quando vê e/ou ouve um dos seus progenitores agredir o outro/a, está em sofrimento emocional, logo, é sobre ela infligido um mau trato psíquico.

Foram, então, alterados diversos preceitos legais no ordenamento jurídico português, por forma a que todo o sistema judicial esteja apetrechado para olhar para a criança como vítima de violência doméstica e para a tratar como tal.

Contudo, e para que esta mudança possa ser uma alteração de Direito e de facto, a própria sociedade tem de ter consciência dela. O que implica deixar de olhar para a criança que vive num contexto de violência familiar como uma mera testemunha. A criança, é vítima dos atos que presencia, que representam maus tratos psíquicos, e é, em simultâneo, testemunha do que se passa entre os seus progenitores.

Consequentemente, impõe-se a todos nós reconhecermos e tratarmos a criança como vítima de violência doméstica.

Ora, o direito que qualquer cidadão tem de denunciar um crime de violência doméstica em que a vítima é adulta é igual ao direito que existe em relação às crianças. Portanto, sempre que se denuncia uma situação de violência doméstica em que a vítima é pessoa adulta, devemos ter sempre o cuidado de enunciar que se naquele mesmo contexto de crime estavam crianças que viram e/ou ouviram o sucedido. Isto para além das situações em que as crianças são vítimas de violência por parte de um e/ou ambos os progenitores sem que exista violência doméstica entre estes.

O direito de apresentação de denúncia contra o progenitor agressor que assiste ao cidadão em geral traduz-se num dever jurídico que têm os profissionais que trabalham nesta temática. Ou seja, a denúncia é obrigatória para as entidades policiais e para quem desempenhe uma atividade compreendida na função pública administrativa ou jurisdicional ou quem desempenhe funções em organismos de utilidade pública ou nelas participar, o que resulta da conciliação do artigo 242º do Código de Processo Penal e do artigo 386º do Código Penal. Aqui se incluem os técnicos de apoio à vítima, os profissionais de saúde que trabalhem em hospitais e/ou centros de saúde, o corpo docente e auxiliares das escolas, estruturas de apoio à infância, assistentes sociais, entre outros.

Ora, assistimos a uma resistência por parte da sociedade em geral em reconhecer as crianças como sendo as outras vítimas da violência. As crianças são as vítimas que ninguém vê nem reconhece.

Efetivamente, a par do que acontece com a violência doméstica entre pessoas adultas, existe uma tendência inegável por parte de todos para identificar e valorar a violência física em detrimento da violência psicológica, o que não pode continuar a suceder!

De uma vez por todas é preciso entender a violência psicológica como uma das formas de violência doméstica, que apesar de invisível aos olhos de terceiros é a que determina sofrimento emocional, baixa autoestima, medo e dependência em relação à pessoa agressora. No caso das crianças expostas à violência familiar acresce ainda o seu sério compromisso ao nível da formação e desenvolvimento da personalidade a que urge pôr termo quando são identificadas as relações abusivas.

Por outro lado, sucede que quando as crianças são ouvidas e reportam a violência por parte de um dos progenitores, recusando muitas vezes estar com o mesmo, há uma presunção por parte dos profissionais que existem atitudes manipuladoras da mãe, quase sempre a vítima adulta nas situações de violência doméstica, tendencialmente catalogadas na nossa sociedade como as figuras alienadoras - porque fazem autênticas lavagantes cerebrais às crianças -, sem se aferir dos motivos da criança, o que impede uma investigação rigorosa e despida de preconceitos.

A sinalização das crianças como vítimas de violência doméstica quando expostas a violência familiar, tem de passar a resultar, inevitavelmente, no seu reconhecimento enquanto vítimas e consequente acompanhamento enquanto tal por parte de todos os organismos e sociedade em geral. Trata-se de respeitarmos os Direitos Humanos das crianças e nesse sentido entender a lei vigente e aplicá-la! 

Um artigo de opinião da Advogada Ana Leonor Marciano, especialista em Direitos Humanos, violência de género e violência doméstica.