Começou por ser um projeto de investigação para o mestrado em edição e publicação que Mafalda Mota tirou na Barcelona School of Management, uma das instituições de ensino da Universidade Pompeu Fabra, mas rapidamente se tornou numa coleção de livros ilustrados para os mais pequenos. A Heróis Sem Capa publica histórias inspiradas em pessoas reais que, de alguma maneira, vivem ou viveram uma vida digna de heróis. E há um novo livro a caminho.
Faz parte de uma nova geração de escritores de livros infantis que escreve por uma causa, o que acaba por ser uma forma de despertar interesse num público cada vez mais afastado da leitura e da literatura. Fê-lo por razões comerciais ou há uma explicação plausível para o facto de, neste livro em concreto, "Os meus amigos invisíveis", ter pegado na questão da saúde mental?
A comerciabilidade das minhas histórias sempre esteve longe de ser um dos argumentos com os quais justifico a decisão de escrever sobre saúde mental. As minhas histórias têm como inspiração pessoas reais e as pessoas reais são confrontadas com situações incontroláveis com as quais têm que lidar e praticamente todas passam, de alguma forma, pela saúde mental.
Mais do que isso, todas elas são diferentes e merecem ser retratadas. Este tema, que está agora finalmente a ganhar algum tempo de antena, mas que está longe ainda de ser discutido na sua inteira complexidade, é algo sobre o qual não me lembro de ler quando era pequena. Não me lembro de ler sobre protagonistas que não fossem os protagonistas típicos e menos ainda que me mostrassem que o que lia tinha como base a realidade.
Foi fácil materializar as mensagens que procurava transmitir numa história infantil ou, muito pelo contrário, foi um desafio que ainda lhe deu água pela barba, se me permite uma expressão popular ainda muito usada?
De um modo geral, nunca é fácil retratar mensagens que têm, atreladas, um sentimento pesado e duro. Porque falar de saúde mental é duro! Tenho que fugir à diabolização da questão. Tenho de ter cuidado com as palavras que uso, por exemplo. Tento não puxar demasiado pelo lado positivo, para evitar entrar num ciclo de positividade tóxica...
E procuro escrever de uma forma que as crianças me entendam, descomplicada. Tudo isto enquanto tento, ao máximo, fazer justiça e mostrar respeito perante o testemunho deixado pelo herói que estou a homenagear. Ainda que muito interessante, por vezes, consegue ser um malabarismo complicado...
Em termos práticos, como é que o seu livro ajuda os mais pequenos a lidar com a questão da saúde mental?
Pelo que consegui perceber, ajuda-os, pelo menos, em dois aspetos. Primeiro, acabam por se rever numa personagem que sabem que é fictícia mas que tem, consigo, uma dose de realidade que lhe traz a tridimensionalidade de que precisam para sentir que podem confiar no que lhe acontece.
Isto faz com que, se algum dia calçarem os sapatos da personagem ou até que estejam do outro lado da situação, se lembrem desta história e a possam analisar sob uma perspetiva mais tolerante, tanto para consigo mesmos como para com os outros.
E, segundo, sinto, pelas reações que tenho tido ao longo do tempo, que a história os deixa confortáveis o suficiente para, pelo menos, tentarem não ter vergonha de se expressarem quando não estão a conseguir lidar com alguma coisa.
Muitos especialistas, nacionais e internacionais, afirmam que a pandemia viral de COVID-19 fragilizou a saúde mental das crianças e também dos adultos. Na promoção que tem feito do livro, também tem tido esse retorno?
De um modo geral, sim. Arrisco-me a dizer que há mesmo muito pouca gente que está a passar por esta pandemia e que vá sair dela sem qualquer tipo de repercussão, pequena ou grande. No mundo dos livros, num país que, no geral, lê pouco e confia ainda menos no que sai das próprias mãos, dizer que é difícil é pouco.
No meu caso em particular, sendo que escrevo livros infantis, o que é fundamental para pôr o livro no mapa é fazer visitas a escolas e ler a história às crianças. Algo que se tornou, naturalmente, impossível de fazer e que fez com que dar a conhecer o meu trabalho simplesmente não acontecesse.
Sem qualquer controlo sobre a situação, pois não havia nada a fazer, foi como se todo aquele tempo passasse e todo o trabalho que tinha feito até então tivesse sido em vão. O que não foi, sei disso agora. Mas houve ali uma fase em que achei que não ia parar de dar de caras com a parede e não havia nada que eu pudesse fazer.
No seu caso pessoal, não sei se este livro foi escrito antes ou depois da pandemia, o confinamento e o afastamento social afetaram o seu processo criativo e/ou a disponibilidade para a escrita?
Esta história em específico já vivia na minha cabeça há três anos, mas só a coloquei no papel no início do primeiro confinamento. Ainda que estivesse entusiasmada para começar a trabalhar no livro, este não foi, de todo, um processo fácil. À semelhança de muita gente, a minha gestão da pandemia resumiu-se a várias fases, umas melhores que outras.
Para grande azar da artista em mim, a maior parte delas trouxe uma imensa falta de inspiração e, paradoxalmente, uma grande vontade de estar à altura do desafio. Os meus dias giravam à volta do trabalho, do sentir que não era capaz no geral e do pânico de estar a falhar. Isto, naturalmente, dificultou-me a tarefa.
Eventualmente, quando me apercebi de que estava presa a uma rotina que não me estava a fazer bem, consegui tirar algum tempo para respirar e para avaliar o que ia dentro da minha cabeça e fui libertando a criatividade aos poucos. Depois disso, consegui fazer um trabalho do qual me orgulho, o que não é uma tarefa fácil.
A leitura e a escrita são uma paixão que vem de longe ou, quando era criança, os livros e as canetas nem sequer figuravam na sua lista de brinquedos e acessórios favorita?
Adorava dizer que sim. Seria uma história bem mais romântica! A verdade é que os livros, no seu todo, sempre os adorei. Sempre tive muita curiosidade em saber como eram feitos e há pouca coisa que se compare ao conforto trazido pelo cheiro de um livro acabado de estrear. Ler, escrever e ilustrar é que não foi propriamente uma constante. Quando era criança, adorava que os meus pais me contassem histórias.
Após aprender a ler, achava maravilhoso ser possível juntar letras, formar palavras e dar-lhes sentido. No entanto, quando entrei na adolescência, em grande parte por teimosia minha, não li muito. Ia lendo… Perdi-lhe o gosto e só me voltei a apaixonar pela leitura quando me vi sozinha numa cidade que não conhecia, com tempo nas mãos e uma vontade enorme de escapar para outro lado qualquer.
Desenhar, poderia dizer que sim, que sempre adorei desenhar e que sempre desenhei muito. Desde os rabiscos mais sem sentido que se possam imaginar a trabalhos completos, daqueles de horas a fio. Foi o gosto pelo desenho que me trouxe até aqui. Apesar disso, tal como com a leitura, houve ali uns anos, durante a faculdade, em que cheguei a detestar desenhar e a jurar a pés juntos que não seguiria ilustração. A vida acaba por ser irónica porque, mais tarde, foi a ilustração que me salvou, digamos assim.
Escrever, por outro lado, nunca foi o meu forte e nunca me entusiasmou muito, confesso. Isto até encontrar aquilo sobre o qual escreverei até que tal seja impossível, os heróis da vida real. Se tivesse seguido os conselhos que dava a mim mesma quando era pequena, hoje não escreveria nem ilustraria. Seria, antes, patinadora no gelo profissional e, muito provavelmente, teria uma loja de roupa.
Depois deste livro, já há um novo em perspetiva? Em termos de projetos, o que é que tem atualmente em mãos?
Felizmente, sim. O ano que aí vem trará uma nova heroína, uma artista inspirada numa mulher que admiro verdadeiramente e que considero hilariante. E que, por acaso, tem paralisia cerebral. E mais não digo! Sobre outros projetos a decorrer agora, de momento está muita coisa em stand-by. Estou a aproveitar este pseudo-intervalo para me focar em desenvolver a Heróis Sem Capa mas os projetos que forem aparecendo são todos bem-vindos...
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