Não obstante os dados atuais relativos à queda da natalidade no nosso país serem preocupantes, Maria João Valente Rosa, Demógrafa e Professora da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas na Universidade Nova de Lisboa, acredita que “o futuro não tem de ser necessariamente uma fatalidade” e que tudo “depende do que fizermos no presente, da nossa capacidade de ação e da coragem para nos reformarmos enquanto sociedade.” Defende, ainda, que as medidas políticas de incentivo à natalidade não devem “ficar reféns de uma área em particular, como as finanças. Devem atravessar todos os setores de interesse público, desde a educação, à saúde, passando pela economia, trabalho, ciência ou mesmo relações internacionais.”
O último Inquérito à Fecundidade, realizado entre janeiro e abril do ano passado, e apresentado pelo INE e pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, revelou, entre outros dados, que os portugueses têm menos filhos do que desejariam. A que é que se deve o “travão” dos portugueses à decisão de terem mais filhos?
Na realidade os resultados do inquérito revelaram que a fecundidade global desejada pelos portugueses é superior ao número de filhos realmente tidos. Mas permitir-me-ia salientar dois comentários: Primeiro, nenhum de nós tem o que deseja, seja a que nível for. Quero com isto dizer que o desejo que surge no inquérito é bastante teórico, no sentido de ser próximo do que se gostaria que acontecesse em termos ideais. Depois, mesmo em termos de desejo, estamos longe de uma ambição de ter descendências tão numerosas como no passado.
Feitos estes comentários, podemos dizer que existe um travão para quem quer ter filhos, um travão natural que tem muito que ver com as circunstâncias reais de existência e com o valor imenso que tem a criança na nossa sociedade. Por isso, adiar o seu nascimento até que estejam reunidas as melhores condições para se ter um filho é uma resposta. Aliás, e segundo os dados disponíveis na Pordata, percebemos que a idade de nascimento do 1º filho tem vindo a aumentar de forma significativa nas décadas recentes, sendo atualmente de 29,5 anos no caso das mulheres, seis anos mais tarde, em média, que em meados dos anos 80.
Entre as condições de existência, naturalmente que os aspetos económicos e a estabilidade profissional são fatores a ter em conta. Aliás, uma elevada percentagem dos inquiridos referiu estes aspetos como relevantes para a sua decisão. O que não é estranho. O outro fator reconhecidamente importante prende-se com a conciliação entre tempos de trabalho e de família. É real o profundo stresse entre ser-se boa mãe e bom pai e, ao mesmo tempo, boa ou bom profissional, muito presente na sociedade portuguesa, o qual se agudiza em momentos de crise, de menor estabilidade laboral e de incerteza financeira.
A queda demográfica em Portugal está a fazer-se acompanhar de outros fenómenos paralelos, como a crescente emigração das gerações mais novas. Se este cenário continuar, que futuro nos reserva Portugal, nomeadamente para os jovens?
A população de Portugal tem diminuído nos anos mais recentes, em larga medida fruto de saldos migratórios negativos.
Portugal, como todos os restantes países da Europa, está cada vez mais dependente da imigração para crescer, pois o número de nascimentos é cada vez menor por comparação aos óbitos. Aliás, em Portugal o número de nascimentos tem sido persistentemente negativo nos últimos anos.
O dinamismo demográfico do país pressupõe, assim, a recuperação da sua atratividade em relação a jovens estrangeiros. Esta atratividade tem também reflexos sobre os nascimentos. Lembro que 10% dos nascimentos em Portugal já são filhos de mães de nacionalidade estrangeira. Por outro lado, a emigração, que se situa atualmente em níveis muito elevados, também é decisiva para o dinamismo da população de Portugal. E, na medida em que muitos dos emigrantes são jovens em idades férteis, os nascimentos são afetados, pois acabam por não acontecer em Portugal.
Não sou oráculo para descrever o que será o futuro de Portugal em geral e dos jovens em particular. Sabemos, contudo, que o presente é bem diferente do passado. Por isso é tempo de revermos princípios e modelos que funcionavam bem no passado, mas que na sociedade atual fazem cada vez menos sentido, como “a antiguidade é um posto”, que “os estrangeiros, vulgo de imigrantes, valem menos que os autóctones, qualquer que seja a situação” ou que o diploma, embora seja uma base necessária, é por si suficiente para uma vida de sucesso.
O futuro não tem de ser necessariamente uma fatalidade. Depende muito do que fizermos no presente, da nossa capacidade de ação e da coragem para nos reformarmos enquanto sociedade.
Quais são os principais “perigos” de se viver num país envelhecido?
O envelhecimento demográfico, pelas causas que o motivaram, é positivo. Envelhecemos do ponto de vista demográfico porque crescemos em saber e vivemos em melhores condições do que no passado; esses progressos conduzem a níveis de fecundidade menos elevados e a maiores hipóteses, para todos, de chegarem às idades avançadas e de aí de viverem mais tempo.
O principal perigo de viver numa sociedade envelhecida, não é tanto por ela estar a envelhecer. Resulta, no essencial, de ainda não termos conseguido adaptar-nos a este curso dos factos (envelhecimento demográfico), como escrevi num recente ensaio publicado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos intitulado “O envelhecimento da sociedade portuguesa”. Assim, e caso continuemos a manter o modelo de organização da sociedade herdado do passado, as consequências desagradáveis futuras podem ser profundas, a começar pelo acentuar da insustentabilidade do Estado Social e a acabar num conflito entre gerações (mais novos / mais velhos). Mas isso pode ser evitado se nos conseguirmos reestruturar. Tudo começa na consciência dos factos. Em primeiro que, independentemente dos níveis de fecundidade (mesmo de um eventual aumento), o envelhecimento demográfico continuará, pelo menos a médio prazo. Em segundo lugar, que a categorização das pessoas, do seu papel na sociedade e dos seus direitos ou deveres em função do atributo “idade”, em vez do mérito ou da capacidade individual, faz cada vez menos sentido.
A taxa de natalidade tem vindo a baixar consecutivamente e também se tem verificado uma tendência dos casais ficarem só pelo primeiro filho. Em termos sociológicos, o que é que isto pode representar a longo prazo?
Dados da Eurostat revelam que temos a 2ª taxa de natalidade mais baixa da Europa e, segundo o INE, a percentagem de casais com filhos baixou de 41,1% para 35,2%, entre 2001 e 2011. São dados preocupantes...
Na verdade, as estruturas familiares são muito diferentes, em relação ao passado. Por exemplo, as famílias monoparentais e reconstituídas ganham importância e o casamento perde o seu papel como passo essencial para o início de um projecto de parentalidade. Lembro aqui, e segundo os dados divulgados na Pordata, que 46% dos nascimentos em Portugal são fora do casamento e que 13% dos nascidos são filhos de pais que não coabitam.
As famílias adquirem variantes múltiplas. E, num contexto geral de quebra de fecundidade, as situações de filhos únicos também adquirem maior visibilidade.
Na realidade, são cada vez menos raras as situações de crianças que crescem como filhos únicos; ou acompanhadas por primos, por os seus pais também já terem menos irmãos do que no passado; ou de outras crianças, porque a natalidade está em queda. Frequentemente, as grandes companhias destas crianças únicas passam para o campo tecnológico, via televisão, iPads ou amigos sucedâneos do “Tamagoshi”.
De novo, torna-se necessário que os modelos sociais e educativos se adaptem a estas novas realidades de filhos únicos, porque há riscos. Temo os efeitos futuros da concentração das expectativas, por parte dos pais e dos avós, nessas crianças únicas, que passam a ser alvo de todas as atenções, assim como a idolatração do seu valor ou a sua sobreproteção quotidiana. A menor capacidade destes adultos do futuro em lidarem com adversidades sociais da mais variada ordem, como no mercado de trabalho, pode ser um desses efeitos menos desejáveis para o amanhã da nossa sociedade como um todo.
No inquérito à Fecundidade recentemente divulgado, a maioria dos inquiridos reforçava a importância de serem aplicadas medidas políticas de incentivo à natalidade e Pedro Passos Coelho anunciou, no final de fevereiro, uma equipa multidisciplinar para trabalhar neste sentido. Acha que passa por aqui? Se sim, e na sua opinião, quais as medidas mais urgentes de serem aplicadas e quais as que considera que teriam um efeito mais imediato?
Existe um espaço para medidas, desde que enquadradas numa política coerente de natalidade, dirigidas às pessoas que querem ter filhos.
Ao longo dos tempos, aquilo a que temos assistido em Portugal são iniciativas avulsas que, muitas vezes, se inviabilizam mutuamente. Por isso, é preciso pensar de forma menos imediatista - independente de agendas ou de interesses de organizações particulares - e mais estruturada sobre o tema, com mais conteúdo científico. A realização do Inquérito à Fecundidade de 2013, fruto de uma parceria entre o INE e a FFMS, é um contributo para que essa reflexão se faça de forma séria, para que não se avance para a “terapia” sem o necessário diagnóstico.
Quanto às medidas, porque a decisão de ter filhos é muito complexa, envolve inúmeros fatores, sociais, psicológicos, culturais e também emocionais, estas não podem ficar circunscritas a um único factor, como o dinheiro, por exemplo. Facilitar a conciliação de tempos de família e de trabalho, promover a estabilidade e permitir o sucesso dos percursos profissionais das mulheres que engravidam e a maior igualdade de géneros são alguns dos eixos a ter em conta. Mais nascimentos em Portugal significa, ainda e necessariamente, encontrar condições para o país voltar a ser atrativo para os jovens estrangeiros e menos repulsivo para os jovens nacionais.
Por tudo o que disse, entendo também que o desenho da política não deve ficar refém de uma área em particular, como as finanças. Deve atravessar todos os setores de interesse público, desde a educação, à saúde, passando pela economia, trabalho, ciência ou mesmo relações internacionais.
A par destas medidas políticas de que tanto se fala, não considera que Portugal também precisa de uma mudança de mentalidades? Por exemplo, a nível das entidades patronais e na forma como estas encaram a gravidez das suas funcionárias e as respetivas licenças de maternidade?
Portugal precisa, em várias frentes, de se adaptar aos novos tempos. A mudança de mentalidades é essencial. A começar por pensar que o “ter filhos” não é um assunto quase exclusivo das mulheres. Tanto mulheres como homens estão envolvidos nesse projecto. Por isso, dar sinais de uma parentalidade mais repartida, como dizia há pouco, é importante.
Embora saibamos que em Portugal ainda existe um longo caminho a percorrer nesta área de igualdade dos indivíduos, independentemente do género, é preciso fazê-lo e, claro está, as empresas não podem ser dispensadas do processo.
Sobre as medidas em concreto que referiu, sabemos que, no discurso de muitos, as propostas facilitadoras do retorno da mulher a casa são a boa solução. Entendo isso como um retrocesso social, o que não significa necessariamente que não devam ser pensados mecanismos que facilitem a conciliação da situação de gravidez e o trabalho. Mas, neste campo, parece-me que com o suporte das novas tecnologias, a possibilidade de trabalho à distância ou o fomento do trabalho a tempo parcial, novas portas de ação se abrem! O outro exemplo: frequentemente, propõe-se dar às recentes mães mais tempo de licença de parto, como instrumento que fomentaria os nascimentos. Mas pergunto: não foi por não quererem estar em casa que as mulheres foram trabalhar? Não foi por quererem ser independentes de pais ou maridos que tudo investiram em educação e carreiras de sucesso? Uma medida inteligente, na minha ótica, seria então dar mais tempo de licença para os pais no seu conjunto, metade para a mãe e metade para o pai (este seria obrigado a gozar a licença e veria esse direito transformar-se em dever).
Num artigo do jornal Público, o economista João Barbosa de Melo declarou que, de um ponto de vista estritamente económico e financeiro, “ter filhos torna-se uma irracionalidade”. Concorda com esta afirmação?
Difícil concordar ou discordar desta afirmação, pois desconheço o enquadramento em que foi proferida. Porém, é inegável que a criança nos dias de hoje tem um custo económico para as famílias, diferentemente do que acontecia nas sociedades passadas, em que a criança representava um bem para a economia familiar: era mais um “braço” para trabalhar e, de certo modo, um apoio na velhice dos pais. Mas a sociedade mudou, e para melhor! As crianças passaram a ocupar um lugar diferente, não são entendidas de uma forma diria “oportunista”, mas como um bem emocional. Decidir ter um filho é um projeto sério de vida, que tem de estar em consonância com muitos outros projetos de vida. E porque hoje ter um filho já não é mais fruto de um qualquer acaso, sendo um projeto planeado que se espera bem-sucedido, a razão sobrepõe-se à irracionalidade.
Sofia Patrício
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