Pisou um palco pela primeira vez quando tinha apenas quatro anos. Hoje, aos 78, Octávio Matos traz consigo um longo e rico percurso no teatro de revista que o torna numa figura ímpar junto do público. Considera-se um ator de comédia, não um cómico, "isso é outra coisa".

Em conversa com o Notícias ao Minuto, aquele que é um dos veteranos da representação em Portugal não poupou nos elogios e nas sátiras ao panorama cultural do país.

Uma conversa repleta de memórias, que trouxe à liça a atualidade da arte e da cultura e os valores que, de carácter intemporal, formam um bom ator.

Deu os primeiros passos no teatro aos quatro anos. Ser ator era um sonho de menino?

Tenho 61 anos de carreira, 74 de pisar palcos… Nasci no Teatro Sá da Bandeira. Um ano e meio depois fomos para África e só regressei aos sete anos. Mas quando tinha quatro, uma senhora que era atriz fez uma companhia [de teatro] infantil e veio pedir ao meu pai que eu fosse para revista infantil e ele disse que sim. Ser ator sempre foi o meu sonho porque o meu pai era ator. Eu via-o representar e aquilo ficou-me no sangue.

Aos 17 estreou-se profissionalmente. Como era o teatro em Portugal nessa altura?

Aos 17 estreei-me como profissional do Teatro Nacional de Luanda. Estive no Conservatório, mas não acabei o curso porque, entretanto, fui a uma festa de homenagem aos Manos Alexandre fazer uma ‘gracinha’. Veio um dos empresários do Coliseu convidar-me para participar na revista que ia entrar em cena, que se chamava ‘Mulheres de Sonho’. Na altura, o Conservatório Nacional era dirigido por um intelectual qualquer que dizia que não admitia que nenhum aluno do Conservatório fizesse revista, porque a revista era considerada um teatro menor, que não é. A revista é o teatro mais difícil de fazer. Então, não acabei o curso por causa disso, optei por ir para revista.

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© Blas Manuel / Notícias Ao Minuto

Teve um longo e marcante percurso no Teatro de Revista. O que o distingue dos outros géneros?

A revista é diferente porque temos dois minutos para mostrar o que valemos. São vários quadros, tem de se vestir e despir… A comédia não. Enquanto na revista temos de fazer de barbeiro, de sapateiro, de várias personagens, na comédia não. É a diferença que há entre a comédia e a revista. Depois há a palhaçada, que isso é outra coisa. Os palhaços, por quem tenho muito respeito, não têm nada a ver com a revista ou com a comédia. Isso não são atores de comédia, considero-os cómicos.

O que é preciso para ser um verdadeiro ator de comédia?

É preciso ter talento. O teatro não se ensina. O teatro já nasce com a pessoa. Ninguém é ensinado, a não ser no drama. O natural de ser comediante é um dom. O Raul de Carvalho, considerado o Ruy de Carvalho de agora, dizia que o meu pai era o melhor ator português porque era o mais versátil, fazia todo o género de teatro.

No drama, uma pessoa aprende uma vez. Uma vez fui assistir a um drama com a Eunice Muñoz e a Rita Maria. Quando fui cumprimentar a Eunice e disse-lhe: ‘Agora vou fazer uma revista, depois de ver este espetáculo fabuloso…’. E ela respondeu-me: ‘Aquilo [a revista] é que é difícil de fazer. Isto nós estudamos o papel e entramos na personagem. A revista não, têm várias personagens e têm de se modificar’.

A par desse dom que distingue os atores de comédia, a versatilidade é o ingrediente essencial?

É preciso ser muito espontâneo e ter muita capacidade de improviso. Para ser um bom ator tem de ser bom a improvisar. Para se ser médio diz-se o texto e acabou.

Temos muito bons atores, não somos inferiores aos brasileiros, mas também temos outros que são uma miséria

Se formos pôr numa balança, Portugal tem mais atores médios ou mais atores bons?

Temos, de facto, atores muito bons. Não somos inferiores aos brasileiros, nem por sombras. Atualmente, somos superiores. Não somos ‘apalhaçados’. Mesmo quando é preciso uma cena com mais graça, não somos palhaços. Nós temos muito bons atores, mas também temos outros que são uma miséria.

Quais são as principais diferenças que nota na representação em Portugal?

Um ator tem de ser uma pessoa simples, sem peneiras, que dá o seu talento ao público. Há, de facto, pessoas com talento.

Na última novela que fiz, os ‘Jardins Proibidos’, pediram-me para fazer três cenas. Disseram-me que eles [a produção] tratavam mal as pessoas. Às vezes ligam-me e eu digo logo: ‘Antes de mais, vou ganhar quanto?’. Levantar-me às seis da manhã? Estudar textos e textos para ganhar 400 euros? Mas daquela vez fui. Fui contracenar com uma pessoa que eu nem conhecia pessoalmente, diziam-me que era um grande ator, mas era um peneirento. Fui fazer as três cenas com ele, cenas dramáticas, fiquei: ‘Afinal o rapaz é simpatiquíssimo, fizemos as cenas à primeira’. É o Diogo Infante, um belíssimo ator e não o achei nada convencido.

Não acha que se tenha perdido qualidade na representação em Portugal?

Não, de todo. Temos muito bons atores e muito boas atrizes. Mas claro que também temos uns que não valem nada e há muitos que só lá estão [na área] porque são bonitos. Coisa que no meu tempo não havia, tinha de haver talento. Já assisti a raparigas bonitas, quase sem talento nenhum, mas que depois se fazem [boas atrizes].

O talento adquire-se com o tempo, com o treino?

O talento não, o jeito. Talento é uma coisa, jeito é outra.

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© Blas Manuel / Notícias Ao Minuto

Como olha para o panorama cultural atualmente?

Uma vergonha. Não há ajudas. Quando casei com a minha primeira mulher, ela era bailarina em Boston, e quando ela disse aos pais que estava apaixonada por uma ‘star’ portuguesa, julgaram logo que eu tinha um avião particular, um iate, cavalos, isso tudo. Porque um ator da minha categoria lá tinha isso tudo não precisa de, aos 78 anos, estar a trabalhar. Cá eles não ligam nenhuma ao teatro. Só houve uma pessoa - agora vou entrar na política, eu não gosto de política, acho que são todos iguais - que, como político, ajudou a classe artística, chama-se Santana Lopes. Foi a única pessoa que ajudou a classe teatral até hoje. De resto, eles não querem saber do teatro para nada, a não ser que seja o Teatro Nacional ou o teatro mais intelectual - aí às vezes lá dão uns subsídios. No que diz respeito ao chamado teatro comercial, não ajudam nada.

É fácil ser ator com 78 anos em Portugal?

Ser ator em Portugal nunca é fácil. É uma vida muito instável. Conheço colegas que às vezes não têm dinheiro nem para comer, e são bons atores. Eu aprendi com o meu pai. O meu pai era assim: não precisava dos empresários para nada, quando não tinha trabalho tinha a sua própria companhia - e é o meu caso, tenho a minha companhia e ando por aí fora. Felizmente, como sou um ator muito popular, quando vou a qualquer lado, esgoto.

Só faço um espetáculo se for bom. Tenho respeito pelo público, mas o público também tem de ter respeito por mim

Alguma vez temeu cair no esquecimento do meio e do público?

Não, porque eu não deixo. Porque tenho a minha companhia. Porque se eu não fosse assim - se não tivesse aprendido com o meu pai - hoje não tinha trabalho. Como muitos bons atores que andam aí aflitos porque não têm trabalho. Eles [o Governo] não querem saber do teatro para nada.

Eu tenho uma coisa: Só faço um espetáculo se for bom. E o meu público sabe que um espetáculo com o Octávio é um espetáculo bom. Isso dá-me um certo gozo e orgulho. Tenho respeito pelo público, mas o público também tem de ter respeito por mim.

E como é que se conquista esse respeito?

É natural. Eu entro em cena e é logo uma salva de palmas. E não estou a pedir que me batam palmas. São empatias e eu tenho empatia com o público. Há atores bons que entram em cena e não têm empatia. Então, quando acaba o espetáculo, ninguém se lembra. Conheci tantos… A Aida Batista era talvez das melhores atrizes de comédia, mas não tinha empatia. Não passava da segunda fila, como costumamos dizer.

Em algum momento da sua carreira ponderou desistir?

Sim, quando estava próximo dos 30 anos e disse: ‘Se até aos 30 anos eu não for primeira figura de uma companhia, desisto disto’. Faltava para aí um mês para fazer 30 anos e fui convidado para ser primeira figura do Teatro ABC, então continuei. Mas é uma vida muito instável. Por exemplo, agora estive um ano e meio sem trabalhar, tive um problema na anca, todo o dinheiro que tinha ganhado foi indo. Agora estou felicíssimo [por voltar] porque o meu oxigénio é o palco. As gargalhadas e as palmas, isso é que é o meu oxigénio. Andei muito tempo sem entrar no palco e então andava com uma neura...

Principalmente no Natal sinto muita falta dos colegas, dos familiares, sinto-me triste. Por mim já passaram muitos, qualquer dia vou eu

Ao longo do tempo também viu partir grandes nomes da representação em Portugal…

Isso é uma das coisas que me dói muito. Está aqui um [apontou para a capa de uma revista com a imagem de João Ricardo] do qual era muito amigo. É por isso que não gosto do Natal. Gostava de começar a dormir no dia 22 [de dezembro] e acordar no dia 7 [de janeiro]. Porque também não gosto da passagem de ano. Mas principalmente no Natal sinto muita falta dos colegas, dos familiares, sinto-me triste. Por mim já passaram muitos, qualquer dia vou eu. É a ordem natural da vida.

Considera que a representação está bem ‘entregue’ às novas gerações de atores?

Alguns convencem-se de que são grandes atores e não são. É a tal carinha bonita e o tal galã. Mas outros são realmente bons. Eu gosto muito da juventude.

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© Blas Manuel / Notícias Ao Minuto

Dar vida a tantas personagens ao longo da vida ajudou-o a formar-se enquanto homem?

Ajudou muito. Quando se é um ator com predicados - e não é estar a autoelogiar-me -, faz-se várias personagens e sente na pele essas personagens. Se faço de bêbedo, sinto que estou bêbedo, senão não sai natural.

A comédia ajudou-o a sarar as feridas da vida real?

Algumas vezes. Porque, lá está, só me sinto bem quando vou para o palco. Feliz só quando estou no palco. Fora disso, tenho problemas como qualquer ser humano tem. Mas tenho uma coisa boa que é resolver os meus problemas sempre a rir.

A minha atual mulher, além de atriz também é psicóloga. É uma mulher muito mais nova que eu, tem menos 24 anos. Já o meu pai era igual. Sempre gostei de miúdas. Antes também não havia a malandrice que há agora.

Ao tornar-se ator tão cedo, o que é que a fama trouxe à sua juventude?

Nada de especial, fui sempre muito popular, mas sem peneiras. Ao princípio era um bocado tímido.

Ajudou-o com as meninas?

Sim, muito. Era muito brincalhão, muito mandado para a frente. Aí não era tímido.

Casou duas vezes e teve uma filha. Como é gerir a vida privada sendo uma figura tão acarinhada pelo público?

Tive sorte porque me casei com duas pessoas que também eram do meio artístico. A primeira era bailarina clássica, a segunda é atriz. Nunca tive problemas nesse sentido.

Também é conhecido por ser vaidoso. O teatro também cultiva essa preocupação?

Sim, eu gosto. Vou a uma estreia e levo o meu fato, a minha gravata. Sou desse tempo.

É uma forma de manifestar respeito pela arte?

Sem dúvida.

E um homem tão ligado ao humor e à comédia deixa-se emocionar pelo quê?

Emociono-me com muita facilidade. Lembro-me quando foi a festa de 50 anos de carreira, no Teatro Maria Vitória, estava superlotado com atores que eu nem sabia que gostavam de mim. Quando entrei em cena comecei a chorar. Sou muito sentimental mesmo, com qualquer coisa.

Os 78 anos amedrontam-no quanto ao futuro?

Não, sei que qualquer dia vou embora. É natural. Tenho pena, é evidente, mas a vida é assim.

Teme a morte?

Não, espero é não sentir. Como o Nicolau [Breyner] - éramos muito amigos -, não sofreu. Tenho medo é do sofrimento. Peço a Deus, ou a quem existe, para não sofrer. A minha mãe sofreu muito durante três meses. Eu sou a favor da eutanásia.

Foi recentemente operado à anca. Não deixa que essas limitações físicas o afastem dos palcos?

Tive que me afastar porque não havia hipótese. Mas agora voltei e parece que já não se passa nada. O teatro tem isso… às vezes uma pessoa está aflita da voz e chega ao palco e larga a voz toda.

Aos 78 anos ainda tem sonhos?

Não, não tenho sonhos. Quero é trabalhar enquanto possa. Fazer os espetáculos e ver o público a rir.