'Não sou eu… É a minha cabeça' é o nome do espetáculo de António Raminhos em que a saúde mental é a grande protagonista. Durante mais de uma hora, o humorista - que foi diagnosticado em 2006 com perturbação obsessivo-compulsiva - fala sobre a sua experiência com esta doença e relata alguns dos episódios vividos.
Raminhos traz, uma vez mais, este espetáculo a Lisboa, embora refira que esta é a última oportunidade para vê-lo na capital do país. Tudo acontece no próximo dia 2 de abril, no espaço Tenda Parque Mayer, em Lisboa.
O Fama ao Minuto falou com o humorista sobre 'Não sou eu… É a minha cabeça', e nesta entrevista houve ainda espaço para abordar a forma como a saúde mental tem sido encarada pelas três filhas de António Raminhos, Maria Rita, Maria Inês e Maria Leonor, e pela companheira, Catarina Raminhos.
Este espetáculo é uma continuação da vontade de continuar a abordar a temática da saúde mental que, como já é sabido, é muito importante para ti. Ainda assim, não te referes ao mesmo como sendo um espetáculo de stand-up. Com o que podem as pessoas contar?
É um espetáculo de stand-up, mas gosto de dizer que é mais um registo de storytelling [narração de histórias]. Não é simplesmente um espetáculo de observações ou sobre situações da minha vida, é um retrato de toda a minha história de vida, relacionada com a saúde mental, com a ansiedade e com a perturbação obsessiva-compulsiva. Durante cerca de uma hora, conto as minhas principais obsessões e o que, talvez, terá contribuído para ter algumas questões relacionadas com estes temas. Faço uma viagem pela minha cabeça. Depois deixo aberto um espaço para falar com as pessoas, por isso é que não se insere no registo normal de stand-up.
Não é terapia, porque não sou terapeuta nem sou um gajo curado, e o momento de estar a falar com as pessoas é de partilha. As pessoas fazem-me perguntas e, às vezes, também contam as suas histórias. Podem participar também por mensagem anónima para um número que temos lá, caso não queiram expor-se, ou então através de perguntas no fim do espetáculo.
Para mim, comédia é muito mais que contar piadas
E há muitas pessoas que fazem essas mesmas partilhas?
Sim, é muito engraçado. No último espetáculo que fiz em Lisboa, uma rapariga disse que queria ir a um psicólogo mas não tinha amigos que iam e não sabia como procurar. Houve pessoas que se levantaram e disseram que lhe podiam dar os contactos dos seus psicólogos e criam-se assim momentos engraçados.
Como é que surgiu a ideia de criar um espetáculo focado na temática da saúde mental?
Acho que foi a ordem natural das coisas. Nos meus espetáculos, tirando os primeiros, sempre tive uma componente mais pessoal. Para mim, comédia é muito mais que contar piadas. Gosto muito de ver comédia só mas, para mim, faz mais sentido se puder acrescentar mais alguma coisa.
Acho importante a partilha que faço, porque é sincera, porque é real e porque pode ajudar as pessoas que ouvem a identificarem-se e a sentirem alguma tranquilidade
Continua a ser fácil fazer humor com a saúde mental?
Acho sempre que já não vou conseguir escrever mais nada, que é tudo uma m****, que não vou conseguir pegar num determinado tema, mas depois acaba por surgir alguma coisa. Já estou a pensar no próximo espetáculo, que vai estar relacionado com outro tema em que penso muito, que é a morte. Gostava muito de escrever um espetáculo focado no medo de morrer. Volta e meia surge uma ideia e já tenho coisas apontadas. As coisas vão surgindo mais naturalmente.
E no que te inspiras para os espetáculos que crias e para o tipo de humor que trabalhas?
Uma das minhas inspirações é o Mike Birbiglia, um comediante americano que funciona muito no registo de storytelling. Gosto muito dos espetáculos dele porque são uma viagem. Não é que seja uma coisa hilariante, de ir às lágrimas, mas estamos a ouvi-lo como se fosse um filme. Para mim, isso é um fator de inspiração e de algo que gostaria de também poder passar.
Este é um espetáculo fechado desde a sua primeira fase ou vai-se atualizando com novos episódios e situações que te vão acontecendo?
É o mesmo espetáculo. O que acaba por ser diferente é a intervenção do público, porque as pessoas são diferentes. Já tive pessoas que vão assistir duas e três vezes. Não tinham mais nada para fazer [entre risos]. Talvez seja porque se identificam.
Quando aos 26 anos fui diagnosticado com perturbação obsessiva-compulsiva, a minha primeira preocupação, além de fazer terapia, foi procurar livros sobre o tema
Já começas a sentir-te um embaixador da saúde mental em Portugal? E se sim, como é que esse papel te faz sentir?
Não gosto de pensar no termo 'embaixador', parece uma coisa meio oficial. As pessoas diziam-me 'é muito importante o que estás a fazer, parabéns', e eu respondia 'não é nada especial', mas houve quem me chamasse à atenção para não desvalorizar isso. Não se trata de dizer 'olha para mim, tão importante a falar destes temas', mas sim de perceber a importância de abordar os assuntos. No entanto, isso não me torna especial nem a voz da verdade sobre o tema. Acho importante a partilha que faço, porque é sincera, porque é real e porque pode ajudar as pessoas que ouvem a identificarem-se e a sentirem alguma tranquilidade.
Neste momento, como é que olhas para a tua saúde mental?
Continuo na minha busca de conhecimento. Quando aos 26 anos fui diagnosticado com perturbação obsessiva-compulsiva, a minha primeira preocupação, além de fazer terapia, foi procurar livros sobre o tema. Mandei vir muitos livros pela Internet. Há muita literatura lá fora sobre o tema. Tenho muito interesse em saber mais.
Neste momento não faço terapia, mas continuo em contacto com o meu psicólogo, tomo medicação e sou acompanhado por um psiquiatra. Estou a fazer uma pós-graduação em Programação Neuro-Linguística e Mindfulness, que é também uma área que está muito ligada ao conhecimento, aos processos mentais e neurológicos. Pratico desporto e faço meditação... Continuo neste processo ativo de procura de conhecimento.
Eu cheguei aos 26 anos sem saber o que tinha. Era só o 'esquisitinho', o 'parvinho' e o 'nojentinho', achava que só eu é que era assim, que estas ideias só me passavam a mim
E em relação à tua família? Passas-lhes esse conhecimento que adquires e tentas explicar algumas das coisas que se passam contigo?
Sim, eu também aprendo muito com as minhas filhas e com a minha mulher. Às vezes, em conversas com a minha mulher, quando começo a ir buscar coisas que li ou aprendi, ela 'corta-me as vazas' e diz 'agora não quero falar disso, quero só falar e expor o que estou a sentir'. É engraçado, não pode ser nem tanto ao mar nem tanto à terra. Falo muito com as miúdas, mas também elas, às vezes, reclamam, principalmente a do meio, que é a mais relaxada. Ela diz: 'fogo, lá vens tu com a conversa de Deus e do universo' [risos].
Com o conhecimento que já tens sobre o tema, também já és capaz de ajudar aqueles que te rodeiam?
Por vezes, também as miúdas começam a sentir ansiedade por causa da escola, e aí é importante o que vais aprendendo para tentar passar alguma tranquilidade, que no fundo é aquilo que eu não tive. Tento dar às pessoas alguma identificação. Eu cheguei aos 26 anos sem saber o que tinha. Era só o 'esquisitinho', o 'parvinho' e o 'nojentinho', achava que só eu é que era assim, que estas ideias só me passavam a mim. Quando fui diagnosticado e quando comecei a ler foi quando percebi que há mais pessoas que lidam com isto, e foi então que criei esta ideia de identificação. É isso que procuro dar, através destes espetáculos, dos posts nas redes sociais, das conversas que tenho cá em casa, dar esta identificação e dizer 'eu já passei por isto, há mais pessoas que passaram por isto e é perfeitamente normal'.
Se hoje, com a maturidade que tenho e sendo a pessoa que sou, gravava esses vídeos? Não, não gravava
Essa abertura que dizes ter com a tua família sempre aconteceu? Ou o assunto chegou a ser tabu?
Sempre existiu. Eu e a Catarina também já estamos juntos desde 1783 [entre risos], e sempre falámos muito sobre as coisas. Acho que agora ainda falamos melhor e estamos mais à vontade para abordar qualquer tipo de questão que nos preocupe, e perceber que isso não é uma acusação nem que estamos a colocar o outro em causa.
O projeto 'As Marias' marcou muito a tua carreira, principalmente com os vídeos partilhados durante muito tempo por ti no YouTube e nos quais nos mostravas episódios vividos com as tuas filhas. Que relação tens hoje com esses vídeos e, por outro lado, qual a relação que as tuas filhas têm com eles?
Fiz esses vídeos com duas intenções. Primeiro, porque percebi que as pessoas se identificavam com aquilo. Recebia mensagens das pessoas a dizer-me 'isto faz-me lembrar o que vivi na infância com o meu pai' e 'nunca tive uma infância assim'. Tenho poucas fotos minhas na infância, fui o terceiro filho e os meus pais já se estavam a borrifar para mim. Gostava que as minhas filhas tivessem algo mais, por isso fiz os vídeos.
Atualmente vejo alguns vídeos e incomoda-me ver-me a irritá-las e deixá-las a chorar, mas elas estão ao meu lado a ver e estão a rir-se. Elas veem várias vezes os vídeos com as amigas, até me pedem para ver comigo. É engraçado, porque me incomodam mais a mim do que a elas. Se hoje, com a maturidade que tenho e sendo a pessoa que sou, gravava esses vídeos? Não, não gravava. Não gravava porque haja mal, mas simplesmente porque estou noutro registo.
Mas não gravarias os vídeos de todo, ou gravarias de forma diferente?
De forma diferente, se calhar. Gravei recentemente um podcast com as duas mais velhas, a ideia partiu de mim e elas disseram logo que sim, mas ao mesmo tempo arrependi-me. Porque pensei 'já não estou nesse registo, é muita exposição para elas' e nunca mais toquei no assunto, mas elas começaram a insistir. Expliquei-lhes o porquê, que íamos ter uma conversa sincera e que comecei a pensar se elas iriam gostar, e elas disseram-me: 'mas nós queremos e não há problema'. Então eu disse 'tudo bem', e gravámos. Foi muito giro porque recebi várias respostas de casais a verem o podcast com os filhos.
Quando apresentas projetos aos canais, como o 'Parte de Mim', que muita gente diz que são porreiros e depois não chegam a lado nenhum, e olhas para a televisão e vês tanta m**** a passar, penso 'se calhar, não é para seguir por aí'
Há cerca de um mês decidiste lançar no YouTube o episódio piloto de uma série da tua autoria, intitulada 'Parte de Mim'. Neste momento, o vídeo tem mais de 61 mil visualizações e centenas de comentários. Estás decidido em lançar o resto da série no YouTube ou nasceu, entretanto, o interesse de alguém para a compra da série para outra plataforma?
Sinceramente, não sei. Não tenho tido tempo para pensar nisso. Gostava muito de dar continuidade, mas tenho medo de lançar o crowdfunding e depois não atingir o valor, ainda ia ficar mais frustrado. Não sei muito bem o que hei de fazer, mas como tenho tantos projetos a acontecer neste momento, acho que vou esperar mais um bocadinho.
Atualmente estás mais afastado da televisão. É algo que te aborrece ou não tem aparecido o projeto indicado?
Os convites não têm surgido. Quando apresentas projetos aos canais, como o 'Parte de Mim', que muita gente diz que são porreiros e depois não chegam a lado nenhum, e olhas para a televisão e vês tanta m**** a passar, penso 'se calhar, não é para seguir por aí'.
Eu estou bem, tenho trabalho na área que gosto e enquanto as coisas correrem nesse sentido, a televisão não me faz falta. Gostava de fazer, gostava de ter um projeto que me desafiasse e que fosse divertido, mas acho que falta, por parte de alguns canais, essa abertura para experimentar coisas novas. Os diretores têm tanto medo de perder que não arriscam.
Por que motivo consideras que é importante ver este teu espetáculo?
Mesmo as pessoas que não têm questões relacionadas com a saúde mental, conhecem alguém que tenha, portanto pode ser uma boa oportunidade para compreenderem melhor o que passa na cabeça dessa pessoa. Por outro lado, podem ir pela curiosidade de perceber as obsessões da minha cabeça, do tipo 'deixa cá ver o que este maluco pensa'. Este vai ser um espetáculo único em Lisboa e odeio quando publico os vídeos nas redes sociais e depois recebo mensagens de pessoas que dizem: 'isso foi onde? Quando é que fazes esse espetáculo em Lisboa?'. Não há paciência [gargalhadas].
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