No dia 27 de outubro de 1941 nascia Eládio Clímaco. Filho de mãe espanhola e de pai português foi na união dos pais que viu a sua grande força, mas também a sua fraqueza. O grande amor da sua vida foi a televisão, poder-se-á dizer. Foi a ela que se dedicou inteiramente quando viu uma paixão "assolapada" a ceder à vontade contrária da mãe.
Entrou para a RTP em 1972, depois de uma passagem pelo teatro, cinema e rádio. Foram mais de 40 anos intensos de uma carreira que terminou em 2012. Desde então, Eládio confessa-se esquecido e, por vezes, perdido no tempo que começou a passar rápido demais. É com um sorriso que vive o presente, mas é com dúvidas que pensa no futuro.
Como é que ocupa os seus dias?
Os primeiros dois anos da reforma ocupei-os descontraidamente a fazer ginástica, depois cansei-me, deixei de fazer e agora estou a ficar um bocadinho 'apanhado', porque sinto-me inútil, não sinto que esteja a fazer nada que me agrade. Às vezes entro um bocadinho em depressão. Acho que a reforma não assenta nada bem a ninguém, só às pessoas que logo depois têm coisas para fazer. Eu fiz uma série de audições para publicidade, mas toda a gente dizia que a minha voz era muito conhecida. Sinto-me um pouco chateado.
Nunca planeei o que seria o pós-reforma, talvez se tivesse planeado iria ser muito bom
E nunca pensou na reforma, isto é, nunca fez nenhuns planos?
Não sou muito de planear a minha vida. Fiquei muito absorvido desde os anos 1970 até há coisa de cinco anos. Entreguei-me totalmente à RTP e ao meu trabalho e nunca pensei que algum dia isto me iria acontecer. De facto, a RTP deu-me mais um ano, a reforma máxima é aos 70 anos. Nunca planeei o que seria o pós-reforma, talvez se tivesse planeado fosse muito bom. Iria gastar o dinheiro a viajar, que é para aquilo que tenho mais tendência, mas os governos sucessivos têm-me tirado poder de compra.
Se pudesse continuaria a trabalhar?
Com muito gosto, acho que ainda estou bem, um bocadinho esquecido, mas não há mal nenhum. Escrevo bem, faço os meus textos que passam no teleponto e acho que também não sou um velho caquético.
O fazer imagem no princípio foi complicado, sempre fui uma pessoa 'low profile', um pouco envergonhada
O que é que mais o fascinava na televisão?
A televisão sempre me cativou. O fazer imagem no princípio foi complicado, sempre fui uma pessoa 'low profile', um pouco envergonhada. Talvez como cura dessa vergonha e dessa retração a televisão tivesse dado uma ajuda. Fez com que fosse um pouco mais extrovertido, mas não muito. Fiz muitas coisas na minha vida televisiva, passei pelo 25 de Abril que foi algo único, mantive-me na televisão a fazer de tudo. Fiz muitas entrevistas políticas a altas individualidades que vieram a Portugal nessa altura, no 'período quente'.
Essas entrevistas marcaram-no?
Evidentemente que sim. Lembro-me que no forte de Caxias o Major [Ernesto] Melo Antunes reabilitou, com o meu microfone na mão a entrevistá-lo, no celebre 11 de setembro, o Partido Comunista. Isso é algo pelo qual sinto-me muito honrado.
Quando é que decide trocar o jornalismo pelo entretenimento?
A determinada altura tivemos de escolher entre o Telejornal e o entretenimento e aí foram dois dias de muito pensar e de muita angústia. Acabei por escolher o entretenimento, porque a informação estava muito complicada, na medida em que a televisão foi o centro da mudança.
Num programa disse: "Todos nós temos nas nossas mãos sóis que aquecem a humanidade". Meu Deus… fui insultado em tudo quanto havia e cortaram-me essa parte
Fazer televisão com ou sem a censura. Qual a grande diferença?
Antes aconteciam coisas francamente infantis. Por exemplo, dois anos depois de ter entrado para a televisão, puseram-me a fazer um programa em direto que era o ‘Domingo à Noite’, gravado primeiro no Teatro Villaret e depois no Maria Matos. Era um programa em direto ['live on tape'], mas gravado no sábado, porque a censura nessa altura tinha de meter a mão em tudo e não se atrevia que disséssemos alguma coisa que não fosse permitida. Num programa disse: “Todos nós temos nas nossas mãos sóis que aquecem a humanidade”. Meu Deus… fui insultado em tudo quanto havia e cortaram-me essa parte. Para eles estava a ser subversivo, não sabiam o que era ter "sóis nas mãos que aquecem a humanidade", não sabiam o que queria dizer. Eram um bocadinho burros, peço desculpa se há ainda algum velhote por aí…[risos]
Houve também um Natal em que fui a uma loja de roupa para me vestir para um programa. A dona, que era minha amiga, disse-me de uma forma muito inteligente que o Natal não era só para as pessoas que usavam smoking à mesa, que era para todos nós, para aqueles que viviam numa barraca de lata. Então escolheu-me um fato com uma camisa sem gravata. E não é que eles quiseram obrigar-me a pôr gravata? Discutiram comigo e eu discuti com eles de tal maneira que disse: “Ou vocês me deixam fazer isto sem gravata ou eu vou-me embora da televisão”. Foi uma batalha que eu venci.
Acho que a liberdade também foi liberdade à corrupção, liberdade à malvadez
Considera que a geração mais nova dá valor suficiente à democracia?
É claro que a minha geração dá muito mais valor. O que acho é que, e isto tenho de dizer porque sou perfeitamente livre e não sou filiado em partido nenhum mas tenho obviamente as minhas tendências e a minha admiração por um partido em especial, é que no tempo do Salazar - e eu vivi nesse tempo nas lutas universitárias e só não fui preso por acaso - talvez não houvesse tanta corrupção como há hoje. Acho que a liberdade também foi liberdade à corrupção, liberdade à malvadez. É claro que é ótimo viver em democracia, mas realmente acredito que a corrupção não era tanta como hoje. Deixa-me muito triste saber de algumas pessoas que eu considerava e que acabaram por ser apanhadas nas redes da justiça. Como é que em liberdade e em socialismo isso ainda existe?
A nova geração de apresentadores tem uma vida facilitada
Falando em jovens, como é que vê a nova geração de apresentadores?
Essa é uma pergunta a que tenho sempre muita relutância em responder. Tenho medo de ser mal interpretado ou de parecer que tenho a 'mania'. A nova geração de apresentadores tem uma vida facilitada. Agora para fazerem qualquer programa recorrem sempre ao teleponto, a que eu nunca recorria, era tudo estudado com muitas horas de antecedência e não podíamos falhar porque não tínhamos ninguém que nos 'soprasse ao ouvido', só tínhamos os cartões. Acho que têm uma vida muito facilitada e eles próprios não sentem a responsabilidade que nós sentíamos na altura quando éramos televisão única.
Estas pessoas estão muito cheias delas, são muito vedetas e eu não gosto de vedetas Por outro lado, não creio que haja vedetas de televisão como havia na altura, como por exemplo, o Artur Agostinho ou mesmo o Carlos Cruz. Nunca me considerei vedeta. Esta gente acha que sabe tudo, fazem figuras tristes, dizem asneiras de português. Estas pessoas estão muito cheias delas, são muito vedetas e eu não gosto de vedetas, gosto de pessoas que trabalham porque cada um tem a sua profissão. Um engraxador é vedeta na sua profissão se engraxar bem os sapatos, um ferreiro é vedeta se fizer bem o seu trabalho, um pintor, um médico... porque é que as pessoas que mostram a cara na televisão hão-de ser mais vedetas que os outros? Não há motivo.
Mas quando diz vedeta é em que sentido?
Na postura perante a sociedade em que vivem, dos sítios em que estão, dos restaurantes a que vão, perante as pessoas. São pessoas extremamente importantes, mas a quem eu não dou importância nenhuma. Nunca me deslumbrei com isso.
Nunca sentiu ser uma vedeta?
Nunca. Aliás, antigamente se havia uma coisa que me chateava e me deixava extremamente envergonhado era as pessoas não terem a liberdade de chegar ao pé de mim e dizer: "Olhe, eu gosto muito de si". Não, batiam com os cotovelos umas nas outras. Agora não. Vêm ter comigo e perguntam se me podem dar um beijinho. Passo a vida nisto e é extremamente gratificante.
De todos os projetos que fez em televisão qual foi o que mais o marcou?
Marcou-me ter sido o iniciador dos 'Jogos Sem Fronteiras', que era um programa internacional, que o nosso amigo Fialho Gouveia viu lá fora e insistiu em trazer para Lisboa. Eu e ele fomos os iniciadores do programa. Foi algo extremamente importante para mim. Ainda chegámos a exibir um ou dois sem participarmos e depois entrámos [Portugal]. Tive muita pena que acabasse.
Gostava que voltasse?
A política e a vida mudaram e talvez para voltar os 'Jogos Sem Fronteiras' no formato que era não fizesse sentido. Penso que se deveria arranjar qualquer jogo que tivesse as componentes do programa, neste caso a lúdica, a desportiva, o conhecermos mais de cada povo, cidade ou país da Europa. Mas sim, gostava muito que aparecesse e seria o padrinho.
Fui para a televisão, como fui para os meus pais: muito bem comportado. Nunca arrisquei
Na altura em que apresentava o programa ainda se habilitava a fazer alguns desafios ou preferia ficar só mesmo a apresentar?
Nunca fui muito aventureiro, fui muito compenetrado na minha função, até demais. Fui para a televisão como fui para os meus pais: muito bem comportado. Nunca arrisquei.
Não era uma pessoa livre, como filho único sempre senti responsabilidade de não deixar os meus pais ficar mal
Então nunca foi aquele adolescente rebelde?
Nunca fui, porque tive uma educação muito austera por parte dos meus pais. A minha mãe vinha de uma família espanhola, o meu pai de uma conhecida família em Portugal e os dois juntos eram a união perfeita, que eu admirava. Não era uma pessoa livre, como filho único sempre senti a responsabilidade de não os deixar ficar mal, de os acompanhar, e isso talvez me tenha cortado muita coisa.
Mas nunca teve aquele momento em que dissesse aos seus pais que queria seguir a sua própria vida?
Tive. A minha mãe era extremamente austera, queria que eu fizesse determinadas coisas. Tive uma paixão grande até aos meus 22 anos que ela conseguiu vencer. Uma vez passei por um pico de revolta que me levou a fazer a mala para sair de casa, mas a minha mãe venceu porque se pôs a chorar, agarrou-me, abraçou-me e eu cedi a isso. A partir dali fiquei tramado.
Tive uma paixão assolapada, com data marcada para casar e depois as coisas deram para o torto
Enquanto esteve com essa pessoa nunca saiu de casa, manteve-se sempre com os seus pais.
Sim, tive uma paixão assolapada, com data marcada para casar e depois as coisas deram para o torto.
Se fosse hoje faria frente à sua mãe?
Acho que não. Acho que o meu amor pelos meus pais era tanto que não consigo responder, mas gostaria de ter feito.
Mas ao tomar essa decisão subtraiu felicidade à sua vida…
Fui extremamente infeliz, sim.
O Eládio também não chegou a ter filhos. Acha que daria um bom pai?
Eu tive um bom pai, era austero, por vezes ausente, por isso, acho que teria colmatado tudo isso fazendo exatamente o contrário de tudo o que fizeram de errado comigo. O meu pai tinha uma admiração por mim, um amor não transmitido, nunca me disse nada. Havia ali uma barreira entre pai e filho.
É difícil ser-se velho em Portugal?
Acho que é.
Os velhos são descartáveis
Mais difícil agora ou no tempo em que era jovem?
Quando era jovem vivia numa enorme família que seguia a cultura dos velhos. Eram as pessoas de sabedoria aquelas a quem recorria. Essa cultura perdeu-se muito. Os velhos são descartáveis. Há pessoas que os metem em asilos ou hospitais e depois nunca mais lá vão. Tive essa experiência com a minha mãe, que morreu com 95 anos, os seus últimos cinco anos foram difíceis. Ela passou por uma senilidade galopante e teve de ser internada variadíssimas vezes. Comecei a ver que a partir dos 93 anos a mandavam para hospitais de retaguarda, que eu não sabia que existiam. Hospitais em que só dão paliativos e não fazem nada. São casas onde os velhos vão morrer. À minha mãe, por exemplo, para tirar a febre enchiam-na de antibióticos e depois quando passava a febre enviavam-na para casa. Acho que é uma coisa inaudita, preocupante, como nós, o Governo e a medicina tratamos os nossos velhos. Tenho uma tia em Espanha que neste momento está a acabar os seus dias de vida com 93 anos e que já teria morrido se estivesse em Portugal.
O cosmos é que se encarrega de levar ou não as pessoas, não lido bem com a eutanásia
Como é que vê o debate que houve recentemente à volta da eutanásia?
Não sou a favor, como já disse lido muito mal com a morte. O cosmos é que se encarrega de levar ou não as pessoas, não lido bem com a eutanásia.
Acha então que deveria haver um apoio maior aos cuidadores?
Sim, aos cuidadores e aos cuidados paliativos. Tenho um amigo meu que é cuidador e que passa a tarde inteira com uma velha amiga, que está com 86 anos. É um processo altruísta. Agora, dizer que aquela mulher poderia pedir a eutanásia não estou nada de acordo, porque ela está ótima de cabeça. Se ela fosse a principal interessada na eutanásia eu opor-me-ia. Os cuidados paliativos é que têm de ser desenvolvidos. Agora, se custa mais ao Governo? Claro que custa.
É um opiáceo para mim não pensar como será o meu fim
E quem vai cuidar de si?
Não sei, nem ponho esse problema. É um opiáceo para mim não pensar como será o meu fim. Tenho amigos, um é mais velho do que eu e sou eu que o estou a apoiar, está em minha casa, é pintor, tem 84 anos, anda mal… tenho uma empregada que trata dele e que trata de mim, mas não posso pensar que é essa empregada que vai cuidar de mim. Sou sócio da Casa do Artista, será que irei para lá? Seria muito triste. Gostava de morrer em minha casa. Gostava de ter alguém a cuidar de mim. Mas não tenho.
Acho que o meu grave problema e o que me faz estar um pouco em depressão é não ter objetivos
O que ainda lhe falta fazer?
Acho que o meu grave problema e o que me faz estar um pouco em depressão é não ter objetivos. Agora tenho um objetivo ótimo que é ir de férias. Vou a Marrocos. Vou rever um país que amo muito desde os anos 1980.
Acho que a aproximação do fim é muito rápida e isso é uma coisa que me incomoda
Passou demasiado rápido o tempo?
Agora começa a passar. Desde que me reformei sinto isso. Agora é domingo e amanhã é domingo outra vez. Acho que a aproximação do fim é muito rápida e isso é uma coisa que me incomoda. As coisas passam muito mais rápido a partir de certa idade.
Acho que as pessoas com certezas são muito mais felizes do que eu
Tem medo do fim?
Tenho. Eu sou agnóstico, não sou agarrado a nenhuma crença. A angústia que tenho prende-se com essa incerteza. Devo dizer que louvo muito as pessoas que têm fé, que são religiosas, que acreditam noutra vida, quem me dera ser assim. Tenho uma educação católica, desde o batismo, ao crisma e à primeira comunhão, mas depois, talvez pela chegada do adolescente mais racional, fui perdendo essa fé. Acho que as pessoas com certezas são muito mais felizes do que eu.
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