Estive recentemente muito exposto à cozinha goesa. Por um lado, fui no último mês a dois restaurantes goeses de Lisboa, por outro tenho ajudado um produtor inglês que está a filmar um programa de televisão sobre as relações gastronómicas entre Goa e Portugal, e finalmente estive em contato com o chef Floyd Cardoz, um goês que lidera o restaurante Tabla, em Nova Iorque, propriedade do grupo de restaurante do célebre Danny Meyer.

Foi uma viagem sem sair de Lisboa mas que me abriu os olhos para um dos mais interessantes patrimónios da nossa história e cultura gastronómicas.

 A presença portuguesa em Goa iniciou-se em 1510 (e terminou em 1961), quando o realmente grande Afonso de Albuquerque a conquistou aos árabes. Nessa altura, um cronista disse: “É a cidade mui grande, de boas casas, bem cercada de fortes muros, torres e cubelos; ao redor dela muitas hortas e pomares, com muitas formosas árvores e tanques de boa água com mesquitas e casas de oração de gentios. A terra é toda arredor muito aproveitada (…)“. Assim se vê que as bases de uma boa alimentação existiam, com terra rica, água abundante e um mar a perder de vista. Foi com essa base que nasceu a cozinha goesa, um casamento (à mesa) das tradições indianas e portuguesas.

Ao longo dos séculos assistiu-se a uma miscigenação das tradições culturais de ambos os povos, fruto de casamentos cruzados e do isolamento em relação à metrópole, o que levou a que algumas das tradições, nomeadamente as culinárias, tivessem de adaptar-se ao clima, à disponibilidade dos ingredientes e aos gostos locais. Esta fusão de cozinhas criou uma gastronomia de identidade própria, com contributos vindos tanto da colónia como da distante “terrinha”, para além de alguns contributos, principalmente de produtos, vindos de outras partes do mundo português, nomeadamente da costa oriental africana onde Portugal tinha uma sólida presença. A relativa proximidade fazia com que houvesse rotas comerciais regulares entre Goa e Moçambique, razão da existência desta partilha. Na verdade, seria para Moçambique que uma boa parte da comunidade goesa pró-portuguesa iria após 61, aí se estabelecendo para eventualmente acabar por regressar a Portugal, em alguns casos ao fim de muitas gerações de presença na Índia.

A cozinha goesa assimilou coisas da sua “mãe” portuguesa como as sopas (não existiam na Índia antes da nossa chegada), alguns vegetais (quiabo, espinafre, couve-flor, beringela, feijão verde), e no uso (muito maior que em outras partes da Índia) de carne de vaca e de porco. Aqui fez-se notar as tradições religiosas, que em Goa não inibiam (ao contrario da religião hindu e muçulmana) o consumo destes animais. Estas carnes deram vida a pratos como o vindaloo (vindo de vinha de alhos), o balchão, o sarapatel e até o chouriço Goês, semelhante ao nosso mas mais picante, como seria de esperar. Nos peixes, abundantes em Goa, muitas das preparações são ao estilo português e até pratos de bacalhau por lá existem... Last but no least, em termos de doçaria, existem muitos traços da nossa doçaria tradicional, não fosse Goa uma colónia onde a presença da Igreja se fazia sentir de sobremaneira. O melhor exemplo é bebinca, uma sobremesa feita à base de ovos, algo muito pouco comum no resto da Índia.

Enfim, tudo provas de que também na mesa fomos deixando a nossa marca pelo mundo.... que delícia...