“Um dia vou querer ver um concerto dos National com a minha filha e dizer-lhe: “Vês? Também foi tudo melhor por causa deles”. Quem já acolheu na sua vida o som da banda norte-americana The National e a voz arrebatadora de Matt Berninger, compreende o porquê da referência sentida que a radialista e escritora Inês Meneses chama para o seu mais recente livro “Caderno de Encargos Sentimentais” (edição Contraponto, embora com três edições anteriores de autor).

Inês, que dá voz na Antena 1 aos programas “Fala com Ela”, “O Amor É” (a par com o psiquiatra Júlio Machado Vaz) e “PBX” (com Pedro Mexia), deixa-nos em mãos uma obra que aconchega em pouco mais de 60 páginas, pensamentos, recordatórios, desabafos. Como matéria-prima, a própria vida, o “quotidiano”, como refere Inês Meneses.

Frases escritas ao sabor dos dias, publicadas livres no Facebook, mais tarde disciplinadas na organização (até onde a disciplina pode ir), num tomo a que o escritor Valter Hugo Mãe não poupa palavras no prefácio que lhe dedica e que apelida “a ciência inteira”. O autor do livro “O Filho de Mil Homens”, deixa-nos, na abertura, à presente obra de Inês uma expressão que nos fica a bailar no espírito: “eu bem que disse que a Inês é a mais perigosa das mulheres. Fica-nos com o coração”.

Palavras que nos dão mote para a conversa que mantemos com Inês Meneses, nascida em 1971, apaixonada pela rádio desde os 16 anos, e que a propósito das palavras de Hugo Mãe, lhes vê “intuição”. Quanto ao coração: “o perigo é não o termos. O perigo é não sentir”.

E é sobre o seu/nosso sentir, aquilo que Inês nos dá no seu “Caderno”. As palavras de Inês Meneses aconchegam-se-nos numa espécie de prontuário pessoal para o futuro. A autora não deixa as palavras órfãs de ritmo. Junta-lhes uma playlist pessoal. Arcade Fire, Everything But The Girl, Nick Cave, Talking Heads, António Variações, entre muitos outros, traçam-nos uma geografia musical.

Sobre Matt Berninger, na mesma citação que acompanha a abertura desta entrevista, diz-nos Inês Meneses: “ele mantém essa capacidade de nos levar ao fundo, resgatar do fundo, deixar lá de novo e brincar com a nossa fragilidade”.  E sugere-nos o tema “Fake Empire”. Como fugir, depois desta referência, daqueles primeiros versos da música que nos evoca uma geração desiludida e apática: “Stay out super late tonight/Picking apples, making pies…”

Inês dispõe-nos contra esta apatia, evoca a mudança, o empenho na superação, o amor e a entrega, mas também a aceitação, sem que para tal precisemos da unidade de medida que nivela muitas das relações sociais atuais, o like. “Os likes compram-se, o talento continua a não estar à venda…”, recorda-nos Inês.

Inês Meneses
"Sinto-me muito bem, devo dizer, mas cá em casa há sempre vida: há música e flores, há o silêncio das manhãs luminosas, há gente que traz mais vida à minha vida: a minha filha e o meu namorado". créditos: Joana Linda

Inês, por definição o caderno de encargos é documentação com orientações e referências a cumprir na conceção e execução de uma obra. No caso de um “Caderno de Encargos Sentimentais” de que obra falamos?

De um Caderno, em forma de Livro, onde se reuniram pensamentos diversos do quotidiano e a partir de onde é fácil fazer contas de subtrair ou somar. O balanço (aqui) é sempre positivo. Da falha também se ergue aprendizagem.

Depois de três edições de autor, a Inês deixou o seu “Caderno” cresceu para uma edição de maior porte, chegando a mais leitores. Fê-lo neste momento por considerar que as relações humanas são, atualmente, um território ainda mais inóspito?

De facto, a secura é grande. O vírus ainda a potenciou mais, mas também é no deserto que nascem as flores mais bonitas. A frase serviu-me de inspiração numa qualquer travessia longa. É preciso andar muito para chegarmos a algum lado. Nas relações humanas também. E há sede de sermos melhores. Reside aí a minha esperança.

Como reagiu às palavras que o escritor Valter Hugo Mãe lhe dedica no prefácio à obra: “A Inês é a mais perigosa das mulheres. Fica-nos com o coração”? Sentiu que a expressão confirmava algo de que já desconfiava?

Senti primeiro a generosidade imensa do Valter, um homem que se deixa (felizmente) levar pela emoção. O Valter é muito intuitivo: viu no livro um potencial que eu pensava ser só para amigos. Muito graças a ele, o livro está a fazer uma travessia feliz e acompanhada. Sobre o coração? O perigo é não o termos. O perigo é não sentir.

Estamos muito e somos muitos. Trocámos o contacto direto pela proteção fictícia dos portáteis. Deixámos nós de ser portáteis para estagnar no conforto do sofá.

A Inês começa o seu livro com uma pergunta, “para onde ia a nossa solidão quando não tínhamos telemóveis e iPads?” Não estaremos, agora, de tão conectados ainda mais solitários?

Estamos muito e somos muitos. Trocámos o contacto direto pela proteção fictícia dos portáteis. Deixámos nós de ser portáteis para estagnar no conforto do sofá. Somos os novos eremitas mas rodeados de tecnologia. O excesso está a condenar a espécie humana. O planeta está a dar-nos demasiados recados. Eu também não vivo sem tecnologia, mas encontro na conversa com o outro, parte da minha salvação.

As redes sociais são um bom veículo para extravasar sentimentos, ou antes um palco para mimetizarmos sentimentos?

Uma e outra coisa. Uma montra para purgas várias: da frustração ao amor. Replicamos muito mas também arriscamos em verbalizar/escrever aquilo por que estamos a passar.

A Inês considera que likes são uma boa “unidade de medida” da nossa aceitação por parte dos outros, ou uma espécie de prémio de consolação?

Impressionou-me muito aquele episódio do “Black Mirror” [série transmitida na Netflix] em que a nossa aceitação passava por essa unidade de medida. Na verdade, muito do que se passa, passa por essa alegada fama onde nem sempre cabe talento. Os likes compram-se, o talento continua a não estar à venda…

Do Facebook para o livro, a compilação dos posts/sentimentos/pensamentos foi um processo fácil, dada a vinculação ao formato papel?

Foi bastante fácil. Mérito ao estúdio da Lavandaria que organizou e pensou a ordem dos pensamentos (e lhes deu formato e cor) depois da minha escolha. Estava tudo lá: os sentimentos não se alteraram.

Senti um enorme alívio quando depois de tudo escolhido e lido, percebi que nada se alterara. Pressinto que me vou continuar a encontrar com o que escrevi.

Ao fazer a seleção para o livro, reviveu certamente as emoções e sentimentos inerentes ao momento da escrita. Revisitar estes excertos foi um reencontro ou houve estranheza?

Nenhuma estranheza. Sou eu, é a minha vida em momentos diversos ali condensados. Senti um enorme alívio quando depois de tudo escolhido e lido, percebi que nada se alterara. Pressinto que me vou continuar a encontrar com o que escrevi.

As relações humanas e o amor colam-se naturalmente às suas publicações. Tendo de escolher uma frase capaz de conter a complexidade destas relações qual seria?

Sem qualquer dúvida: Se não chegas ao coração dos outros, como queres chegar a algum lado?

inês meneses
"É preciso andar muito para chegarmos a algum lado. Nas relações humanas também. E há sede de sermos melhores. Reside aí a minha esperança". créditos: Inês Meneses. Foto retirada do Facebook da autora.

Num dos posts faz referência a uma passagem do filme de Terence Malik, A Árvore da Vida, “Se não amares a tua vida passa num instante.” Inês, será que a vertigem deste nosso tempo nos permite amadurecer o alcance desta citação?

Penso realmente que não é possível. Os sentimentos maiores requerem construção e nada está a ser edificado. Diria até que o mundo vive à beira da implosão. Falta saber se daqui/daí sairá alguma coisa. O amor (qualquer Amor) valida a nossa existência.

Também no seu livro, a propósito da cantora Sade, recorda-nos a forma como esta se retirou do meio artístico. Refere que não sabemos ser elegantes nos passos que damos: “somos gananciosos e vertiginosos”. Deixámos de saber quando e onde parar?

Claro. É preciso maturidade e serenidade (talvez o mais difícil de alcançar?) para podermos fazer essa retirada. Há uma altura em que determinadas coisas deixam de fazer sentido e temos de saber sair de cena.

Amar é um ato de generosidade. E há que ceder e dar muito para termos esse Amor. Se houver ganância deixa de ser amor.

Amar não é também expressão da ganância e da vertigem?

Não creio. Amar é um ato de generosidade. E há que ceder e dar muito para termos esse Amor. Se houver ganância deixa de ser amor. A vertigem vejo-a mais no processo inicial da paixão.

caderno de encargos sentimentais
O livro é uma edição da Contraponto. créditos: Contraponto. Capa: Rui Rodrigues

Viajar no “Caderno de Encargos Sentimentais” é também escutar a música que perpassa a obra. De certa forma, é um convite para escutarmos em silêncio. Deixámos de saber ouvir esta música dentro do silêncio?

Sim, o silêncio assusta-nos muito. Devolve-nos um eco que pode ser desconfortável: a nossa existência pode ser desconfortável, então deixamo-nos atordoar e anestesiar de diversas formas. O silêncio é purificador. Precisamos de não o temer.

Inês, este “Caderno de Encargos” é anterior a este tempo estranho que vivemos. Tendo de incluir uma adenda à obra com uma frase sobre o mundo tal como o conhecemos desde o aparecimento da COVID-19, que testemunho traria?

Na dúvida escolhe viver: não temas, não deixes que o medo te paralise. Cuida dos mais frágeis e ajuda a que o mundo encontre de novo movimento. Estamos paralisados no medo.

A Inês tem lidado bem com o teletrabalho. Não se sente só? Ou, se preferir, encontrou a fórmula para povoar de companhia a solidão? 

Sinto-me muito bem, devo dizer, mas cá em casa há sempre vida: há música e flores, há o silêncio das manhãs luminosas, há gente que traz mais vida à minha vida: a minha filha e o meu namorado. Não estamos sós nem sozinhos. Ouvimo-nos.

Podemos esperar para breve uma nova incursão da Inês nos escaparates nacionais?

Vou tratar disso, sim. Até lá têm-me na rádio, na Antena 1. Brevemente começarei essa incursão por um mundo novo: o da ficção.


Entrevista concedida por escrito.