Vinte anos após a publicação do último romance de Gabriel García Márquez (1927-2014), "Memória de minhas putas tristes" (2004), e dez anos após a sua morte, chega às livrarias de todo o mundo, na quarta-feira, o romance póstumo do autor, um acontecimento que a Penguin Random House espanhola, que edita a obra, considera uma “celebração para a literatura mundial”.
Numa conferência de imprensa que teve lugar hoje no Instituto Cervantes de Madrid, os filhos do escritor colombiano Gonzalo García Barcha e Rodrigo García Barcha e a diretora editorial da divisão literária da Penguin, Pilar Reyes, explicaram a origem do livro e a razão por que o resgataram do esquecimento, mais de 10 anos depois de o seu autor ter decidido que “não servia”.
“Este livro é inútil. Tem de ser destruído”, terá dito Gabriel García Márquez, conhecido como Gabo, à sua agente, Carmen Balcells, depois de ter dedicado anos a trabalhar nele, confirmaram hoje os filhos.
Foi precisamente porque viram a dedicação do pai a trabalhar neste romance, e só quando começou a perder a memória é que o abandonou, que decidiram dar-lhe uma oportunidade.
“Quando dizia que o livro não servia e não tinha sentido, suspeitávamos que perdera a capacidade de julgar o livro, porque também tinha pedido a capacidade de escrever e de ler. Ele nunca guardou livros não editados, eram destruídos. O facto de não ter destruído este livro, tinha que ter um significado, ou tê-lo-ia destruído para que não existisse”, explicou Rodrigo García Barcha.
O cineasta colombiano sublinhou ainda que “não há mais livros, este é o último sobrevivente”.
Gonzalo García Barcha acrescentou que a intenção dos filhos foi “não deixar 'Gabos' soltos”, permitindo que toda a obra do escritor esteja à disposição dos leitores, à distancia de uma livraria.
A alternativa seria ficar guardado no arquivo pessoal do escritor, no Harry Ransom Center, no Texas, Estados Unidos.
Segundo os filhos, o romance “Vemo-nos em Agosto” tem “muitas características de Gabo: a beleza da prosa, o conhecimento do ser humano e o poder de descrição”, mas tem como personagem principal uma mulher, coisa que não era muito comum nos seus trabalhos, salvo raras exceções, como em “A incrível e triste história da Cândida Eréndira e da sua avó desalmada”.
“Gabo não tem um romance com uma mulher com estas características, isso também nos entusiasmou a publicar este livro, porque não se assemelha a nenhum já publicado”, salientou Rodrigo Barcha.
Gabriel García Márquez sempre gostou muito de mulheres, em grande parte por ter crescido rodeado de “mulheres fortes” - a avó, a mãe, as irmãs – e “considerava-se feminista na forma como conduzia a vida. Além disso, tínhamos a nossa mãe [Mercedes Barcha] que também sempre foi muito forte. Ou seja, não havia um discurso, mas havia um exemplo”, acrescentou.
Gonzalo Barcha disse ainda que apesar de haver um número muito maior de homens no seu núcleo familiar, “Gabo dizia que era Mercedes que conduzia tudo”, e quando este morreu, “Mercedes ganhou uma dimensão descomunal, sempre foi o exemplo de uma líder absoluta”.
Este novo romance é um exemplo dessa influência, porque “a protagonista é uma personagem livre, independente e de uma grande força de caráter”.
Sobre a edição póstuma, Gonzalo Barcha - que também trabalha em cinema, como produtor – garantiu que o texto incluído no romance é o “texto integral”.
“Não se acrescentou nada que não estivesse nos múltiplos originais que Gabo deixou deste romance. Não se fez trabalho de edição, de ter que fazer acrescentos. Estava um pouco disperso num determinado número de originais, mas estava completo”, explicou.
Pilar Reyes detalhou que as versões mais recentes dos manuscritos tinham alguns acrescentos feitos pelo autor, e deixavam evidente um “trabalho com a língua e com as palavras, um trabalho de auto-edição” feito pelo autor.
O trabalho que o editor teve foi simplesmente de “seguir um pouco o rasto” e chegar à versão final, porque a história estava completa”, disse ainda, acrescentando que o romance, traduzido em cerca de 40 línguas, teve uma primeira tiragem “muito forte”, de 250 mil exemplares.
A primeira revelação da existência deste romance foi feita em 18 de março de 1999, quando participava numa sessão de leitura de contos na Casa da América, em Madrid, ao lado de vários outros escritores, entre os quais José Saramago.
Na altura, Gabriel García Márquez surpreendeu os presentes ao anunciar que estava a trabalhar num novo livro, que teria como título “Vemo-nos em Agosto”.
Para além de um prólogo, que procura explicar ao leitor as circunstâncias em que este livro surgiu, da autoria de Rodrigo e Gonzalo García Barcha, e de uma nota final do editor do livro, Cristóbal Pera, esta edição conta ainda com quatro páginas ‘fac-similadas’ do manuscrito original, adianta a Dom Quixote, que edita o livro em Portugal, com tradução J.Teixeira de Aguilar.
A história de “Vemo-nos em Agosto” centra-se em Ana Magdalena Bach, uma mulher casada, com dois filhos e uma vida estável, que todos os anos viaja na mesma altura até à ilha onde a mãe está sepultada, para visitar e depositar flores no seu túmulo.
Todos os anos, hospeda-se num hotel e à noite desce para comer algo no bar e observar os homens, até que se torna rotina na sua vida, todos os anos, em agosto, na altura da visita ao túmulo da mãe, arranjar um novo amante, revela a editora, descrevendo o romance como “um hino à vida, à resistência do prazer apesar da passagem do tempo e ao desejo feminino.”
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