Guilherme Fonseca não tem um pingo de vergonha. Ora repare: nem sempre se lava dos joelhos para baixo por preguiça, trata os gatos por “filhos”, tem pavor a quem dobra sacos em triângulos e nojo de banhos de imersão. O humorista, argumentista e apresentador também não iliba os leitores no seu mais recente livro, Que Pouca Vergonha (edição Manuscrito): “é bem provável que circule na faixa do meio, seja viciado em true crime ou publique 34 stories seguidas quando a sua amiga faz anos. Porquê? Não bastava uma?”
Há filósofos, pensadores e comentadores preparados para responder às grandes questões da Humanidade. Guilherme Fonseca prefere as pequenas e insignificantes e leva-as para o seu livro: Como é que o Putin faz cocó? Porque é que os dentistas insistem em falar connosco quando estamos de boca aberta? Quando é que paramos com os trigger warnings? Porque é que não sabemos fazer “bichas”?
Depois do livro Deve Ser, Deve, dedicado à “estupidez dos chalupas negacionistas”, o humorista vira a atenção para a sua própria estupidez, para a do leitor e para a de toda a Humanidade.
Do livro Que Pouca Vergonha publicamos o excerto abaixo:
Eu que não tenho masculinidade tóxica
Numa altura em que se fala tanto de masculinidade tóxica, gostava de aproveitar este espaço para deixar uma coisa bem clara: não tenho e acho que nunca tive. Mas atenção, quando digo que não tenho, refiro-me, obviamente, à parte da “masculinidade”, já que a “tóxica”, como já devem ter percebido, abunda em mim.
Não é preciso perder muito tempo na Internet para perceber que se tem discutido muito o que é um homem. Que define a masculinidade? É a autodeterminação? É ter um pénis? É usar manga à cava e palitar os dentes com a unha do mindinho?
Ora, o que quer que seja que define o que é um homem, eu não possuo. Não sei o que me falta, mas garanto que não tenho masculinidade tóxica. Todos os clássicos que se associam por estereótipo à ideia de masculinidade passaram a voar por mim, como uma gaivota com diarreia.
Em 1624, quando o poeta inglês John Donne escreveu que “um homem não é uma ilha”, avançou-se para uma resposta, mas, infelizmente, uma que peca por não ser concreta. Definir pela negativa é um passo na direção certa, mas um passo curto, digamos assim. Como quando na escola eu perguntava aos meus professores qual era a data do teste e eles me respondiam “não é hoje”. É uma resposta, sim senhor, mas não ajuda muito. John, posso duvidar se serei um homem, mas ainda assim tenho a certeza de que não sou a ilha de São Miguel.
A minha questão é a seguinte: eu não sei ser homem. “Homem” no sentido clássico do termo, entenda-se. Por meio de repetição, criámos vários estereótipos que agora associamos à ideia de “ser homem”, e eu, por inaptidão ou azar, não correspondo a praticamente nenhum. Ao mesmo tempo que aprecio um bom rabo, enjoo-me rapidamente de cerveja. Irrito-me no trânsito, mas não coço os testículos em público. Apesar de saber dar excelentes arrotos, também adoro lavar a loiça. Percebem o meu dilema? Estou para a “masculinidade clássica” como o Rui Moreira está para o Phil Dunphy: pareço muito, mas não sou.
Penso que se correr os “clássicos” da masculinidade me irão entender melhor. Para começar: não gosto de futebol. Acho um desporto aborrecido em que dos noventa minutos de jogo se aproveitam apenas oito ou nove de bom futebol. Os restantes oitenta e um são passados a ver homens adultos a rebolar no chão. Agora, imaginam o que é crescer e viver em Portugal não gostando de futebol? Já duvidaram mais vezes da minha heterossexualidade do que da do Harry Styles. Admitir que não se gosta de futebol em Portugal é o equivalente a vestir uma echarpe e subir ao palco do Trumps para dançar Anitta. Não interessa que eu acompanhe basquetebol, por exemplo. Se não sei o nome de pelo menos três jogadores do onze inicial do Benfica e do FC Porto, é porque não sou um “homem” a sério.
A acrescentar ao futebol, não entendo nada de carros. Zero. Confio sempre nos mecânicos como as mulheres confiam no ginecologista: eles é que são os especialistas, portanto abram lá isso, inspecionem e depois digam-me só que peças é que preciso de trocar. Não faço ideia de como é que se distingue um pistom de um aileron e só vi três dos filmes da saga Velocidade Furiosa. Nas autoestradas, encosto à direita, e sempre que acende a luz do óleo, eu rio-me porque parece a lâmpada do Aladino. Serei eu um homem se odeio conduzir e não percebo nada de carros? É que, para mim, os carros parados num stand são como os ciganos para o André Ventura: todos iguais, não os distingo. Sempre que um amigo enceta uma conversa sobre o novo “TDI”, perco-me num processo mental de descodificação da sigla e, se ele acrescenta os litros ao cem, fujo da conversa porque fico com sede. Não tenho qualquer capacidade para falar de carros também porque não tenho vontade nem interesse. Que me perdoem os aficionados do programa Volante, mas para mim um carro é só uma máquina que me leva do ponto A ao ponto B. Sou tão ignorante de marcas e modelos que não seria capaz de identificar o meu próprio carro se ele não estivesse sempre todo sujo. Aliás, só não o lavo para não o perder de vista.
A acrescentar a tudo isto, não sei fazer absolutamente nada no campo da bricolage. Nada. Para mim, uma porca é uma senhora sexualmente livre e uma bucha é a sandes de fiambre que um trolha come na pausa para o almoço. Não só não possuo uma “caixa de ferramentas” em casa — apetrecho obrigatório quando uma pessoa alega ser um “homem” — como não sei distinguir um alicate de uma pinça combinada. Escreve-vos um indivíduo que está tão habilitado a furar uma parede como a operar um doente cardíaco.
O meu caso ainda fica pior quando chegamos ao último estereótipo associado ao homem, que defende que um macho controla as suas emoções evitando a todo o custo chorar. Ora, a julgar pela minha reação quando me aparecem TikToks de gente que filma o último dia de vida dos seus cães, antes de os eutanasiar, não só não sou homem como devo ser o oposto, o que quer que isso seja. Só serei um dia um "homem" quando proibirem os filmes da Pixar e apagarem a Ted Lasso da Apple TV.
Serei então eu um homem, sendo tão pouco masculino? Se não ando como um pato, nem grasno como um pato, ficarei bem numa travessa com arroz e chouriço? Se analisarmos as outras hipóteses, por meio de eliminação e estudo de mercado, as coisas não ficam muito mais claras.
Pensei largamente no assunto e concluí que também não sei ser mulher. Não me depilo, não tenho prazer em ouvir fofocas e só conheço quatro músicas e três namorados da Taylor Swift de cor. Recebi sempre o ordenado justo para o meu emprego e posso garantir-vos — sem entrar aqui em pormenores, que seria desagradável — que nunca me aconteceu não atingir um orgasmo. Ora, não sou “macho”, mas certamente também não sou “fêmea”.
Quererá isto dizer que sou não binário? A ausência, ou uma mescla, de ambas as anteriores? Ainda não consultei nenhum especialista em identidade de género, mas apostaria que dificilmente o serei. Como posso ser não binário se os pronomes me assustam tanto? Juro, fico mais nervoso com a possibilidade de me sair um pronome errado ao pé de um não binário do que um palavrão ao pé de uma criança.
Falar com atenção a pronomes é como enfiar uma linha numa agulha: muito complicado de fazer, especialmente para as nossas avós. É por respeitar quem tem tanta certeza do que é que eu não faço ideia do que sou. Que interessa identificar-me como homem se mais ninguém o consegue fazer? “Eu sou homem!”, digo eu, ao que me irão responder: “Está bem, então pede mais uma imperial e vem ajudar-me a mudar este pneu que o jogo do Benfica está quase a começar”. Quando um dia eu finalmente falecer, fiquem atentos às reações das pessoas que forem ao meu funeral. Na eventualidade de alguém dizer que eu era “um grande homem”, por favor, corram até junto dessa pessoa, agarrem-na e perguntem-lhe, olhos nos olhos, “em que medida?”. Era um favor que me faziam. Até lá, vou calar-me com este tema e fazer-me homenzinho.
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