Conhecemo-lo como uma das vozes da manhã da rádio M80. Paulo Fernandes, formado em Comunicação Social e Cultural, também é um rosto conhecido do pequeno ecrã, ao participar em alguns projetos televisivos da TVI. Desde 2015, Paulo desenvolve uma outra competência, o treino e desporto de obediência de caninos. Uma paixão pelos cães, o seu comportamento e relação com os humanos, que levou Paulo Fernandes a frequentar vários cursos, incluindo uma Pós-Graduação em Intervenções Assistidas por Animais com a sua cadela, a Baby. Fruto da experiência que traz, Paulo assina o livro Andar à Trela (edição Oficina do Livro), uma obra com lançamento a 27 de fevereiro que orienta o leitor na solução das questões mais comuns a quem decide levar para a sua vida um patudo. Um livro que também é um manual que toca em questões prementes do tempo presente: é benéfico humanizar os cães? A relação dos amigos de quatro patas com as crianças. A diferença entre um criador e um criadeiro. Problemas comportamentais e de saúde dos canídeos. Temas que nos dão o mote a uma amena conversa com o Paulo.
O Paulo é um homem que conhecemos do mundo da comunicação. De há uns anos a esta parte também no podcast que traz o nome deste seu livro. Quando surge no Paulo a afeição pelos patudos?
Foi por volta de 2015. Já tinha um cão e fui buscar uma cadelita, a Baby, para lhe fazer companhia. Nesse momento pensei: “bem, vou ter dois cães, é melhor criar alguma disciplina, alguma ordem”. No início era uma barafunda [risos]. Com o tempo comecei a interessar-me pelo treino de cães, comecei a ler algumas coisas sobre o assunto e a fazer umas formações. Sobretudo, comecei a perceber como funcionava o treino. Entretinha-me muito com a cadela e percebia que ela gostava de cooperar. Percebi as vantagens do treino, tanto para tutores como para os cães.
O que mais o fascina nos cães e na relação destes com os humanos?
A relação recíproca entre as duas partes. Se der do meu tempo ao cão, ele vai retribuir. É uma relação que envolve alguma disciplina, consistência e rigor. Quando se fala de seres vivos é muito difícil uma pessoa conseguir alcançar a perfeição. Este é um desafio tão viciante que uma pessoa acaba por ficar muito ligada. Ou seja, a procura de algo que considero ser inatingível. A tal perfeição em comportamentos caninos e, também, nos comportamentos humanos.
Aliás, no seu livro escreve que “é impossível ter o cão perfeito”. Há nesta frase uma crítica a quem considera que o treino tornará o animal perfeito?
De facto, é impossível ter o cão perfeito. Os cães trazem um ADN, um caráter, um temperamento que podemos tentar modelar, se assim podemos dizer. Mas, fica lá sempre qualquer coisa que é própria do animal. Se o cão for mais calmo, mais equilibrado, será sempre assim. Se for um cão mandão ou mais agitado, também será sempre um cão mais mandão ou agitado. É impossível mudar um cão a 100%. Uma das coisas que digo aos meus alunos é para que escolham bem o cão que vão adotar ou o cão que vão comprar. É um compromisso para muito tempo e não há milagres. Muitas vezes as pessoas esquecem-se que os cães são isso mesmo, cães, e que estão nas suas vidas. Quando os trazemos para as nossas vidas, tentamos fazer com que eles se adaptem a um mundo que é completamente diferente. Se tivermos isto presente, abre-se o caminho para termos muito mais paciência e conseguimos compreender melhor porque é que os cães assumem determinados comportamentos.
Dedica precisamente um capítulo à questão da humanização dos cães. Lembra-nos que treinar um animal não é humanizá-lo. O Paulo é crítico a esta forma de olhar para os animais.
Sim, porque daí advêm muitos problemas. Há quem tente fazer dos cães pessoas ou tratá-los como tal. É o princípio do fim, como costumo dizer, pois não é uma questão natural e, claro, não faz sentido. Os cães têm uma energia especial, precisamente por serem cães e por trazerem determinados comportamentos. E todas as raças são assim. Hoje, encontramos pessoas que carregam cães ao colo, pessoas que não deixam os cães andar, transportam os animais dentro de carrinhos. Atenção não estamos a falar de cães com necessidades especiais. Os cães foram feitos para andar com as quatro patas no chão, para explorar.
Há bons e maus motivos para querer ter um cão nas nossas vidas?
Claro. Começo com um exemplo de um mau motivo. Por vezes, não sabemos porque é que vamos buscar o cão. O animal é para enfeitar? Nesse caso que se arranje um peixinho ou um gatinho. Provavelmente envolvem menos compromisso. Agora dou-lhe um bom motivo: passear um cão é um grande desbloqueador social, por exemplo para pessoas que estão sozinhas ou aquelas que são um pouco tímidas. Foi assim que conheci o meu melhor amigo e já lá vão 20 anos.
Para o Paulo qual é a pergunta mais importante a fazer por quem pensa treinar um cão?
Respondo não com uma, mas com várias perguntas. Quanto tempo tenho para me dedicar ao ensino do cão? Quanto tempo da minha vida tenho para o meu cão? Porque quero ter um cão? Para ficar bonito nas redes sociais? É uma má decisão. Ou quero um cão para passar tempo com ele, ensinar-lhe coisas, correr e passear com ele, fazer-lhe companhia? O cão vai cumprir a função adequada à sua raça? Estas são apenas algumas perguntas. Se forem feitas, a maior parte das pessoas não vai adotar ou comprar um cão.
Porquê treinar um cão?
Em primeiro lugar, para conseguir fazer uma melhor adaptação do cão ao nosso mundo. Ter um cão que não consegue ser funcional em nossa casa, ou na zona onde vivemos, à partida é um cão comprometido em sociedade. Há que ensinar-lhe os protocolos básicos. De que me interessa ter um cão para levar à esplanada, se não está em paz e quietinho. Para quê adotar ou comprar um cão de companhia se esse animal for de uma raça que não gosta de estar com pessoas ou é um cão mais independente? À medida que vamos ensinando o cão, organizamos um puzzle que está dentro da cabeça do animal e este vai percebendo onde estão as balizas através das quais se deve movimentar.
Há raças de cães mais fáceis de treinar do que outras?
Sim, mas dou sempre este exemplo: posso ter o melhor carro do mundo, mas se não tiver carta de condução, não me vai servir de nada. Posso ter um Fiat 500, a cair de podre, mas se tiver carta de condução e muita experiência a conduzir, posso ter um carrinho incrível. É sempre o melhor exemplo que dou, porque tenho muitos alunos que têm um cão “cinco estrelas”, mas depois verificam que “não têm unhas para tocar guitarra”, como se costuma dizer. No fundo, há que saber ‘guiar’ o cão.
Nestes nove anos de treino de cães já se deparou com situações onde julgou não conseguir treinar o animal?
Há duas ou três situações ao longo destes anos que me levaram a pensar: “isto vai ser muito difícil”. Não só pelo cão, mas também pela disponibilidade, ou falta dela, de certos tutores. Por vezes, deparamo-nos com cães com problemas completamente enraizados, seja por uma questão genética ou por questões do seu passado. Portanto, imaginemos um cão adotado com alguns comportamentos difíceis. Não conhecemos o seu passado, o que traz aquele cão no coração. Há toda esta dinâmica. Depois, há outros animais que, com mais paciência, acabamos por conseguir melhorar alguns aspetos que, calhando, nos pareciam muito difíceis de modelar à partida.
Quais são as características mais importantes que deve ter um treinador de cães?
Saber ler os tutores. Claro que tem de saber ler o cão. Mas, acho que muito passa por saber levar os tutores pelo bom caminho. Há que recorrer sempre à honestidade, abrir o jogo, explicar as regras desde o dia zero e cultivar a paciência. O trabalho principal é feito pelos tutores. É uma questão de bom senso. Se alguém vai adotar ou comprar um cão é porque se está a comprometer. E também terá de se comprometer comigo. É claro que se o cão ajudar e tiver uma boa genética para aprender, torna tudo um pouco mais fácil. Mas há que compreender que o treinador não faz milagres. Acontece com frequência um cão trabalhar bem na mão de um treinador e mal na mão do tutor.
O Paulo leva uma questão polémica para o seu livro: trela, sim ou não?
Por uma questão de bom senso não vou andar com um cão solto na rua, primeiro para não incomodar os outros e também para proteger o animal. Pode, por exemplo, correr atrás de uma bola e acabar atropelado. Também para proteger miúdos que vão a passar e que têm medo do cão. Nem todas as pessoas têm de levar com o meu cãozinho, mesmo quando é muito treinado. Temos de compreender que há pessoas que não estão para aí viradas. E, claro, também há questões legais no que respeita à obrigação de andar à trela.
O livro do Paulo também é um guia que nos fala de diferentes questões no cuidado com os animais. Quer citar algumas?
Sim. Por exemplo, levar o leitor a conseguir fazer uma boa diferenciação entre o que é adotar um animal ou comprar um animal. Depois, no caso, de se optar pela compra, perceber o que é um criador sério. Outra questão pertinente passa pelo transporte do animal em viagem. Hoje, as pessoas ouvem a palavra “transportadora” e associam-na a uma prisão. Não poderia estar mais contra essa ideia. Também abordo a convivência de cães e crianças e o tema dos cães e redes sociais. No fundo há inúmeras questões que me parecem pertinentes.
O Paulo falou há pouco da questão dos criadores sérios. No seu livro também nos fala dos criadeiros. Quer aprofundar?
Sim. Dou-lhe um exemplo: temos dois cães exatamente da mesma raça. Porque é que um me custa três mil euros e o outro me custa cem euros? Qual é o trabalho feito por um dono de um cão de cem euros? O que é que o cão mais caro vai trazer à partida? Qual a razão para esta diferença de preços? E não estou a falar de beleza, mas sim de saúde e também de expetativas. Um cão de determinada raça obedece a características que, normalmente, um criadeiro esquece. Quer dinheiro e mais nada.
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