
A partir da perspetiva de que os objetos contam histórias e refletem sistemas nasceu o livro O Estado Novo em 101 Objetos, assinado pela jornalista Fernanda Cachão. Durante cinco anos, a autora dedicou-se a recuperar e analisar artefactos que, em conjunto, oferecem uma narrativa abrangente do regime. “Se lhes limparmos o pó dos dias e os observarmos com atenção, seremos capazes de ouvir as histórias que têm para contar”.
A proposta, no entanto, está longe de qualquer nostalgia ou revisionismo. A própria autora é clara quanto à intenção: “trata-se de compreender para não repetir”. Esta “montra da ditadura portuguesa” faz de cada objeto um pretexto para discutir um traço do regime, no seu sentido mais estrito, mas também na envolvente social. Por exemplo, “as refeições servidas na primeira classe da TAP em baixelas de porcelana Vista Alegre e Secla representam uma época e a sua classe dominante – mas servem também de pretexto para evocar a criação da companhia aérea nacional ou recordar o facto de o ditador só ter andado de avião uma vez”, podemos ler na apresentação ao livro, publicado pela editora Lua de Papel.
O conjunto de objetos que passa pela escrita e análise de Fernanda Cachão constitui, nas suas palavras, uma síntese “das diversas esferas da sociedade portuguesa naquelas décadas”. E é, de facto, um elenco amplo, à altura de um regime que se prolongou por mais de 40 anos. Aqui se apresentam textos breves e diretos ao tema, como o inventário da casa de Salazar, o manual da PIDE, o anúncio de um contracetivo, o teclado HCESAR, o livro de Maria Lamas, a revista Menina e Moça, o croqui da Casa do Portugal dos Pequeninos, o mapa “Portugal não é um País Pequeno” ou a estátua das mulheres gratas a Salazar.
Da obra, publicamos o excerto abaixo.
O cartaz das tabernas
Nos anos 40, a vinha ocupava 320 mil hectares, repartidos por 337 mil produtores – quase todos de pequenas dimensões. Trinta anos depois, no ocaso do Estado Novo, eram 200 mil, 90 por cento dos quais não enchiam nem 10 pipas por ano.
Ainda assim, a viniviticultura garantia o rendimento mais elevado de toda a produção agrícola do continente. Era também a atividade do sector primário que mobilizava mais mão de obra e durante mais tempo. Na balança comercial, o vinho só ficava aquém da cortiça. Daí se justificar o cartaz de propaganda, lançado em 1938 pela Junta Nacional do Vinho (JNV), que dizia: “Beber vinho contribui para o pão de mais de um milhão de portugueses.”
Nessa altura aparecia também aquele que aqui mostramos, lançado pelo Grémio dos Armazenistas de Vinho e que parecia rivalizar com a campanha da JNV. O cartaz da organização corporativa era ainda mais audaz na propaganda. “O Vinho é a Mais Sã e Higiénica das Bebidas”, anunciava, atribuindo a frase ao cientista francês Louis Pasteur. Continuava neste tom: “Um Litro de Vinho de 10º corresponde, como alimento, a: 90 cl de leite / 370 gr de pão / 585 gr de carne / 5 ovos”. E rematava com “O Alcoolismo é combatido pelo consumo do Vinho”, uma afirmação que citava um tal de Dr. Bertillon, que possivelmente seria o médico francês do século XIX Louis-Adolphe Bertillon.
Durante a ditadura, a produção de vinho em Portugal começou por estar enquadrada pelos Grémios de Vitivinicultores, que foram substituídos no final dos anos 30 pelos Grémios da Lavoura, com exceção da região do Douro. A par dos grémios existiam organismos, também de fiscalização, como as uniões vinícolas de Bucelas, Carcavelos e Moscatel de Setúbal, a Adega de Colares ou a Comissão de Vitivinicultura dos Vinhos Verdes, entre outros. O Douro, porém, estava à parte. Entre 1929 e 1937, praticamente contemporânea do incremento da cultura do trigo em Portugal, decorreu uma campanha que proibia a plantação de vinha, afetando particularmente o Alentejo, onde foram arrancadas inúmeras cepas. Refira-se que as adegas regionais se começaram a aparecer nos anos 50 e 60.
Em julho de 1926 tinha sido criado, por decreto, o entreposto em Gaia, e em 1932, a Casa do Douro, depois de um verão ruinoso, numa reunião realizada no Pinhão por membros de sindicatos agrícolas e vitivinicultores. A Casa do Douro passou a ser de filiação obrigatória e a dominar todo o processo produtivo da vinha – da quantidade de vinho à sua vindima. A quantidade de vinho a beneficiar e a sua repartição pelos vitivinicultores era da responsabilidade da direção do organismo, que trabalhava sob a vigilância de um delegado do Governo. Em paralelo, o Governo cedia às firmas exportadoras, todas sediadas em Gaia, o monopólio da exportação. Este autogoverno era uma excentricidade no Estado Novo, acrescendo ainda o facto de ter surgido de uma reivindicação desses interesses particulares.
Na mais antiga região demarcada (1756), que começou por produzir vinho do Porto para enviar para Inglaterra, a Casa do Douro tinha o controlo da propaganda a este vinho fortificado, mas com a incumbência de “proteger e disciplinar a produção”, tendo poderes para elaborar a atualização do cadastro, distribuir o benefício, fornecer aguardente aos produtores, fiscalizar o vinho na região demarcada e conceder os guias para os vinhos serem transportados para o entreposto de Gaia. Desde o começo que uma das principais funções era o escoamento dos vinhos que não eram vendidos, bem como o cadastro da propriedade, fiscalização e financiamento bancário; ou seja, toda a vida dos produtores da região passava por aquele organismo como sede numa casa de granito projetada pelo arquiteto José Porto, com um vitral da autoria do pintor Lino António e um candelabro que pesava uma tonelada.
Na época, os vinhos eram classificados segundo a sua qualidade - os de Feitoria iam para Inglaterra, os de Embarque para o Brasil, e o Vinho de Ramo vendia-se e bebia-se em Portugal. Escusado será dizer qual destas classificações era a melhor. No ano da fundação do Estado Novo foram ainda criados o Grémio dos Exportadores do Vinho do Porto e o Instituto do Vinho do Porto, que funcionou como um organismo de coordenação económica da região.

Em 1937 foi fundada a Junta Nacional do Vinho, um organismo de coordenação económica que desempenharia funções até depois da ditadura. A sua sede em Lisboa, ao Marquês de Pombal, foi projetada para o efeito por Cassiano Branco. A Junta, que substituiu a Federação dos Viticultores do Centro e Sul de Portugal, que tinha mais de metade da produção no país e podia conceder crédito, tinha ainda as atribuições do organismo antecessor, incluindo a regulação dos preços. Esta Junta nacional lançou uma das propagandas mais emblemáticas da época: o mapa das regiões vinícolas de Portugal, encomendado ao artista Mário Costa (1902–1975). A ilustração reproduzia os estereótipos amplificados pelos Estados Novo em cada região: em Trás-os-Montes, os pauliteiros; no alto Minho e Viana do Castelo, o vira; na Beira Baixa, a “dança das virgens” e os adufes; na Beira Litoral, a tricana e o estudante tocador de guitarra, símbolos de Coimbra; e no Alentejo, os corticeiros e as ceifeiras.
É também deste artista, que foi aluno do curso de pintor-decorador da escola António Arroio, a capa do relatório comemorativo do XX Aniversário da Campanha do Trigo, 1929 –1949, da Federação Nacional dos Produtores de Trigo (FNPT), publicado em 1949, e que dizia: “Vinho é pão, alma da nação”, bem como a propaganda aos produtos madeirenses e cartazes que diziam coisas como “uvas: fonte de saúde w de alegria”. Nos anos seguintes, Mário Costa assinou vitrais de várias igrejas do país, nomeadamente os que foram criados para a remodelação dos Jerónimos, e ainda cenários de filmes como Costa do Castelo, desenhos de coleções infantis como Manecas ou Pim Pam Pum, as ilustrações da obra de estreia de Odette de Saint-Maurice e a campanha publicitária da Mobil Portuguesa.
Comentários