Chloe Walsh nasceu em Cork, na Irlanda, onde vive com a sua família. Há uma década que escreve e publica romances. A série de onde agora verte o livro Keeping 13 (edição Singular) trouxe grande popularidade à autora, nomeadamente no TikTok, Goodreads e Amazon. Amante de animais, viciada em música, e em televisão, Chloe adora passar tempo com a família e é uma acérrima defensora da sensibilização para as questões relacionadas com a saúde mental.
No que toca ao presente título, Keeping 13 traz-nos a personagem de Johnny Kavanagh, apaixonado pelo râguebi. Contudo, uma lesão obriga-o a desistir da sua adorada camisola número 13. Johnny é um lutador e não pretende desistir dos seus sonhos. Para isso, tem Shannon a seu lado. A protagonista do livro mantém um véu de mistério. Aprendeu às suas próprias custas que os demónios não existem apenas nos contos de fadas. Shannon esconde os dramas da sua vida e os segredos da família Lynch.
Como jogador determinado que é, Johnny depressa se apercebe de que, nesta partida, é proibido perder, pois o troféu em jogo é a sua felicidade.
De Keeping 13 publicamos o excerto abaixo.
Ele ou nós
Shannon
– Escolhe, mãe – disse o Joey. – Ele ou nós?
Completamente dormente, sentei-me numa cadeira periclitante à mesa da cozinha, com um pano pressionado contra a bochecha, e sustive a respiração por duas razões.
A primeira era que o meu pai estava a pouco mais de um metro de distância de mim e ter consciência disso, em particular, fazia com que o meu corpo quisesse desligar-se.
A segunda era porque me doía a respirar.
Deixei cair o pano encharcado em sangue na mesa, rodei o corpo e tentei uma posição de descanso contra as costas da cadeira, mas só consegui gemer de agonia quando uma onda de dor me atravessou o corpo.
Sentia-me como se me tivessem regado o corpo com gasolina e depois pegado fogo. Cada milímetro do meu corpo estava a arder e a gritar em protesto de cada vez que inspirava fundo. Eu estava em sarilhos, percebi. Havia alguma coisa de muito errado comigo, e por isso, deixei-me estar quieta, exatamente onde o Joey me tinha posto, sem que me restasse um grama de capacidade para lutar.
Isto é mau. Isto é mesmo mau, Shannon.
O som dos soluços e das fungadelas dos meus irmãos mais novos, encolhidos atrás do Joey, era quase impossível de aguentar. Não conseguia sequer olhar para eles. Sabia que se o fizesse, iria abaixo. Em vez disso, foquei a minha atenção no Joey, extraindo força da sua coragem enquanto ele olhava fixamente para os nossos pais e exigia mais.
Enquanto ele tentava salvar-nos de uma vida da qual nenhum de nós era capaz de sair.
– Joey, acalma-te um momento – começou a nossa mãe a dizer, mas o meu irmão não a deixou acabar.
Completamente enraivecido, o Joey entrou em erupção como um vulcão, ali mesmo, no meio da nossa cozinha degradada.
– Nem sequer se atrevam a dizer uma palavra para saírem impunes disto, maldição! – Apontando um dedo acusador à nossa mãe, rosnou: – Vê se fazes a coisa certa uma vez na porra da tua vida e o pões fora.
Eu conseguia ouvir-lhe o desespero na voz, a sua última centelha de fé nela a desvanecer-se rapidamente à medida que lhe implorava que o ouvisse.
A mãe limitou-se a sentar-se no chão da cozinha, o seu olhar oscilando entre cada um dos filhos, mas nem uma única vez fez um gesto para se aproximar de nós. Não, permaneceu exatamente onde estava.
Ao lado dele.
Eu sabia que ela tinha medo, entendia o que era ficar petrificada perante o homem que estava na nossa cozinha, mas ela era a pessoa crescida. Era suposto ser ela a adulta, a mãe, a protetora, e não o rapaz de dezoito anos em cujos ombros tinha recaído esse papel.
– Joey – sussurrou ela, lançando-lhe um olhar suplicante. – Podemos só…
– Ele ou nós – repetia o Joey sem parar, num tom de voz cada vez mais frio. – Ele ou nós, mãe?
Ele ou nós.
Três palavras que deveriam ter mais significado e mais importância do que quaisquer outras que eu alguma vez tivesse ouvido. O problema era que eu sabia, no meu coração, que qualquer que fosse a resposta dada, qualquer que fosse a mentira que ela contasse a si própria, e a nós, o resultado seria o mesmo.
Era sempre o mesmo. Acho que, neste momento, também os meus irmãos o perceberam. O Joey certamente que percebeu.
Ele parecia tão desiludido consigo próprio enquanto permanecia de pé, em frente à nossa mãe, à espera de uma resposta que não iria mudar nada, porque as ações falavam mais alto do que as palavras, e a nossa mãe era uma marioneta viva a quem o nosso pai manipulava as cordas para reinar.
Ela não conseguia tomar uma decisão. Não sem que ele desse autorização primeiro.
Eu sabia que apesar de os meus irmãos mais novos estarem a rezar para que isto se resolvesse, este ia ser um momento de desilusão.
Nada iria mudar. Nada poderia ser consertado.
Trariam o estojo de primeiros-socorros, o sangue seria lavado, as lágrimas limpas, uma historeta seria inventada, o nosso pai desapareceria durante um dia ou dois e, depois, tudo voltaria exatamente à forma que sempre tivera.
Promessas feitas, promessas quebradas, era o motto da família Lynch.
Estávamos todos presos a esta casa como um grande carvalho às suas raízes. Não havia forma de escapar a isto. Não até todos termos idade suficiente para ir embora.
Demasiado exausta para pensar no assunto, desabei na cadeira, absorvendo tudo e não absorvendo nada. Era quase como uma sentença de prisão sem possibilidade de liberdade condicional.
Descaindo para a frente, abracei as minhas costelas e esperei que isto acabasse. A minha adrenalina estava a dissipar-se a grande velocidade, substituída por mais dor do que aquela que podia conscientemente suportar. O sabor a sangue na minha boca era espesso e intenso, a falta de ar nos meus pulmões estava a deixar-me zonza e enjoada. Os meus dedos oscilavam entre a dormência e a ardência.
Tudo me doía e eu estava farta.
Estava tão farta das dores e das merdas. Não queria esta vida na qual tinha nascido. Não queria esta família. Não queria esta cidade, nem as pessoas que cá estavam.
Não queria nada disto.
– Quero que saibas uma coisa – disse por fim o Joey, com aspereza, quando ela não lhe respondeu. O seu tom de voz era gelado ao cuspir as palavras que eu sabia que se agitavam dentro dele como um veneno que precisava de ser exorcizado das profundezas do seu coração partido. Eu sabia, porque sentia o mesmo. – Quero que saibas que, neste preciso momento, te odeio mais a ti do que alguma vez o odiei a ele – o seu corpo estava a tremer, as mãos enroladas em punhos ao longo do tronco.
– Quero que saibas que já não és minha mãe… não que alguma vez tenha tido uma coisa dessas, para começar – cerrou o maxilar, lutando para que a dor dentro dele não explodisse. O seu orgulho recusava-se a deixá-lo mostrar emoções à frente daquelas pessoas. – A partir deste momento, estás morta para mim. As tuas merdas todas? Lida tu própria com elas. Da próxima vez que ele te bater? Não estarei cá para te servir de escudo. Da próxima vez que ele beber o dinheiro todo e tu não puderes alimentar os miúdos ou repor a eletricidade? Encontra outro cretino que te arranje dinheiro. Da próxima vez que ele te atirar pelas escadas abaixo ou partir o teu maldito braço numa das suas fúrias de whisky? Vou fingir que sou cego, tal como tu fizeste, aqui mesmo, nesta cozinha. A partir de hoje, não estarei aqui para te proteger dele, tal como tu não estiveste aqui para nos proteger.
Encolhi-me a cada palavra que saía da sua boca, sentindo a sua dor no mais profundo da alma, já que se misturava com a minha.
– Não fales assim com a tua mãe – rosnou o nosso pai num tom ameaçador, elevando-se nas suas pernas, um metro e oitenta e cinco e noventa quilos de pessoa. – Seu merdinhas ingrato e…
– Nem sequer te atrevas a falar comigo, pedaço de merda nojento – avisou o Joey, olhando-o de forma ameaçadora. – Posso partilhar o teu sangue, mas não mais do que isso. Eu e tu não temos mais nada a ver um com o outro, velhote. No que me diz respeito, podes arder no inferno. Na verdade, tenho a maldita esperança que ambos ardam.
Senti uma mão firmar-se no meu ombro, assustando-me e fazendo-me gemer de dor.
– Está tudo bem – sussurrou o Tadhg, mantendo a mão no meu ombro. – Estou aqui.
Fechei os olhos e as lágrimas escorreram-me pelas faces.
– Achas que me podes falar assim? – O pai limpou a cara com as costas da mão, e ao fazê-lo, um rasto de sangue subiu-lhe pelo braço. – Tens de baixar a porra da bolinha, rapaz…
– Estás a chamar-me rapaz?! – O Joey atirou a cabeça para trás e riu sem nenhum humor. – A mim?! Àquele que andou a criar a porra dos teus filhos durante a maior parte da sua vida? Àquele que limpou as merdas que vocês os dois fazem, que assumiu as vossas responsabilidades, que faz o trabalho de uns pais que são um pedaço de merda sem valor? – O Joey ergueu as mãos, enfurecido. – Posso só ter dezoito anos, mas sou mais homem do que tu alguma vez serás!
– Não abuses da sorte – grunhiu o pai, com os olhos avermelhados e a recuperar rapidamente a sobriedade. – Estou a avisar-te…
– Ou o quê? – zombou o Joey, com um encolher de ombros despreocupado. – Vais dar-me uns socos? Bater-me? Dar-me pontapés? Vais tirar o cinto? Dar-me com um taco de hurley nas pernas? Rebentar uma garrafa na minha cabeça? Aterrorizar-me? – Abanou a cabeça e escarneceu: – Adivinha? Já não sou um rapazinho assustado, velho. Não sou uma criança indefesa, não sou uma adolescente aterrorizada, nem sou a tua mulher saco de pancada – estreitando os seus olhos verdes, acrescentou: – Por isso, o que quer que me faças, posso garantir-te que o receberás com dez vezes mais força.
– Sai da minha casa – silvou o pai, num tom mortalmente tranquilo. – Agora, rapaz.
– Teddy, para! – choramingou a mãe, correndo na direção dele. – Não podes…
– Cala a maldita boca, mulher! – rugiu o pai, voltando a sua fúria para a nossa mãe. – Vou partir-te a cara! Ouviste?
Hesitante, a mãe olhou para o Joey, com uma expressão desamparada.
O Joey permaneceu rígido, claramente a travar uma batalha interna, mas não foi ter com ela.
– Não podes pô-lo fora… – A frase da mãe desvaneceu-se enquanto ela petrificava com um medo paralisante e total do homem com quem tinha casado. – Por favor. – Lágrimas escorreram pelas suas faces pálidas. – É meu filho…
– Oh, agora sou teu filho? Não me faças nenhum favor.
– Isto é culpa tua, rapariga – bramiu então o pai, voltando o olhar para mim. – A andar pela porra da cidade como uma galdéria, a arranjar problemas para a família! Tu és o problema nisto…
– Não te atrevas a ir por aí – avisou o Joey, levantando a voz. – Tira os teus malditos olhos de cima dela.
– É a verdade – rosnou o pai, mantendo os seus olhos castanhos fixos na minha cara. – És um desperdício de espaço, sempre foste. – Com uma expressão cruel gravada no rosto, acrescentou: – Avisei a tua mãe sobre ti, mas ela não quis ouvir. Mas eu sabia. Mesmo quando eras pequena, eu já sabia o teu tipo. A porra de uma anã. – Olhando-me ameaçadoramente, cuspiu: – Não sei de onde é que tu vieste.
Aguentei o olhar do homem que me tinha aterrorizado a vida toda. Ele estava de pé no meio da cozinha, uma força considerável a ter em conta, dois braços fortes que terminavam em punhos que causaram mais danos ao meu corpo do que conseguia lembrar-me. Mas foram as suas palavras, a sua língua, que me causaram danos muito mais profundos.
– Isso é mentira, Teddy! – disse a mãe, numa voz sufocada. – Shannon, querida, não é…
– Nunca te quisemos – continuou o pai, torturando-me com as suas palavras. – Sabias? A tua mãe deixou-te uma semana no hospital, sem saber se desistia ou não de ti, até a culpa levar a melhor sobre ela. Mas eu nunca mudei de ideias. Não conseguia sequer suportar ter-te à vista, quando mais amar-te.
– Shannon, não lhe dês ouvidos – ordenou o Joey, num tom de voz que estava agora espesso de emoção. – Não é verdade. O filho da puta está transtornado. Bloqueia-o. Estás a ouvir-me, Shan? Bloqueia-o.
– Também não te queria ti – bramiu o pai, voltando o olhar para o Joey.
– O meu coração está a sangrar – replicou o Joey, em ar de gozo.
– Bem, sentimos o mesmo por ti – rosnou o Tadhg, a mão a tremer no meu ombro enquanto fitava o nosso pai. – Nenhum de nós te quer!
– Tadhg – disse o Joey, num tom de voz baixo e de aviso, o pânico a iluminar-lhe os olhos. – Está calado. Eu trato disto.
– Não, não vou ficar calado, Joe – disse o Tadhg, numa voz sufocada, plena de mais raiva do que a que um rapaz de onze anos devia carregar. – Ele é a porra do problema nesta família e precisa de o ouvir.
– Tira-o da minha vista! – rugiu o pai, voltando a atenção para a mãe, que pairava ligeiramente afastada de ambos. – Já, Marie! – berrou o pai, apontando-lhe um dedo. – Tira-o daqui antes que eu desfaça o pequeno bastardo.
– Gostava de te ver tentar isso, porra – escarneceu o Joey, deslocando o Ollie e o Sean, que estavam agarrados a ele.
– Não! – A fungar, a mãe mexeu-se para ficar entre o nosso pai e o Joey. – Tens de te ir embora.
O pai deu um passo na direção dela, e a mãe encolheu-se de imediato, as mãos a cobrirem-lhe a cara.
Era o epítome do patético.
Nenhum de nós teve alguma vez uma oportunidade de lutar com esta gente. Como é que o medo e o amor coexistem num coração humano? Como é que ela podia amá-lo quando tinha tanto medo?
– O que é que me disseste?! – sibilou ele, voltando a sua fúria para a nossa mãe. – Que porra é que me disseste?
– Sai – disse a mãe, numa voz sufocada, a tremer da cabeça aos pés enquanto recuava uns quantos passos. – Acabou, Teddy. Estou farta. Estamos fartos. Não consigo… Tens de te ir embora!
– Estás farta?! – zombou o pai, olhando-a fixamente. – Achas que me vais deixar?
Riu-se cruelmente.
– És minha, Marie. Estás a ouvir-me? És minha, porra. – Deu outro passo na direção da minha mãe. – Achas que podes deitar-me fora? Afastar-te de mim?
– Vai-te embora – pediu a mãe, em voz sufocada. – Quero que te vás embora, Teddy! Sai das nossas vidas.
– Achas que tens uma vida sem mim? Não és nada sem mim, cabra! – rugiu o pai, com um olhar selvagem e pleno de loucura descontrolada. – A única forma de me deixares é num caixão, rapariga! Mato-te antes de me deixares. Estás a ouvir-me? Queimo esta maldita casa de cima a baixo contigo e com os teus cabrõezinhos cá dentro antes de te deixar ir embora.
– Parem! – Um pequeno grito saiu da garganta do Ollie enquanto se colava à perna do Joey. – Faz com que parem – soluçou, agarrando-se ao nosso irmão como se ele tivesse todas as soluções. – Por favor.
– És uma menina, agora? – quis saber o pai, parecendo enojado. – Vê se enrijeces, Ollie, seu merdinhas!
– Já chega, Teddy! – gritou a mãe, abraçando o peito. – Sai!
– Esta é a porra da minha casa – bramiu o pai. – Não vou a lado nenhum!
– Está muito bem – declarou o Joey num tom calmo, olhando para os nossos irmãos. – Ollie, vai lá para fora e leva o Sean contigo. – Enfiou a mão no bolso dos jeans, tirou o telefone e entregou-lho. – Toma… leva isto e telefona à Aoife, OK? Telefona-lhe e ela vem buscar-nos.
– Não, não, não! – A mãe começou a entrar em pânico. – Joey, por favor, não os leves para longe de mim.
Assentindo uma vez, o Ollie agarrou a mão do Sean e apressou-se para fora da cozinha, passando pelos braços estendidos da nossa mãe sem hesitação. Aos nove e aos três anos, não confiavam nela. Porque mesmo nas suas tenras idades, sabiam que fosse qual fosse a sua intenção, a mãe iria inevitavelmente dececioná-los.
– Eu disse-lhe para se ir embora. Eu disse-lhe, Joey. Por favor, eu escolho-vos a vocês. Claro, claro, eu escolho-vos a vocês. – Chegou-se ao pé do meu irmão, enrolou a camisola dele nas suas mãos frágeis e olhou-o. – Por favor, não faças isto… Por favor, Joey. Não me tires os meus filhos.
– De que é que lhes serves se não podes mantê-los seguros? – perguntou o Joey, sem se comover. No entanto, a sua voz tremia, quando a nossa mãe se agarrou a ele, suplicando-lhe por mais uma oportunidade para nos dececionar.
– És a porra de um fantasma nesta casa – desdenhou ele. – És papel de parede, mãe. Um rato – passou uma mão trémula pelo seu cabelo louro e sibilou: – Não prestas para nós!
– Joey, espera… espera! Por favor, não faças isto – agarrou nas mãos do meu irmão, caiu de joelhos e começou a suplicar: – Não mos tires.
– Não os posso deixar aqui – disse o Joey, numa voz sufocada, o peito ofegante. – E tu fizeste a tua escolha.
– Tu não percebes – choramingou ela, a abanar a cabeça. – Tu não estás a ver.
– Então levanta-te, mãe – disse o Joey sufocado, a suplicar. – Deixa de estar ajoelhada e sai desta casa comigo.
– Não posso – a mãe exalou um soluço quebrado, abanando a cabeça. – Ele mata-me.
– Então morre – foi tudo o que o Joey disse, num tom vazio de qualquer emoção.
– Deixa-o ir, Marie – rosnou o pai, num tom cheio de maldade. – Ele vai voltar com o rabo entre as pernas. O cabrãozinho é inútil. Não vai sobreviver um dia por sua conta…
– Cala-te! – gritou a mãe, mais alto do que alguma vez a tinha ouvido. A fungar, pôs-se de pé e voltou-se, para fixar o pai. – Cala-te! Isto é tudo culpa tua. Arruinaste a minha vida. Destruíste os meus filhos. És a porra de um louco…
Zás.
As palavras da nossa mãe metamorfosearam-se num grito lamentoso quando o punho do nosso pai a atingiu com força na cara. Ela caiu no chão como um saco de pedras.
– Achas que podes falar-me assim?! – vociferou o pai, olhando de cima para a mãe. – És a pior de todos, sua puta maldita!
Joey só levou alguns segundos a voltar atrás em tudo o que tinha dito porque as suas mãos lançaram-se para a frente e empurram-no para longe dela.
– Mantém a porra das tuas mãos longe da minha mãe. – Empurrou-o com mais força. – Não lhe toques! – Acocorando-se, o Joey tentou pôr a mãe de pé. – Mãe, por favor… – A sua voz quebrou e ele ajoelhou-se no chão e tirou-lhe o cabelo da cara. – Afasta-te dele, mãe. Só isso. – Envolveu-lhe o rosto nas suas mãos ensanguentadas. – Vamos arranjar maneira de resolver isto, OK? Vamos sair disto, mas não podemos ficar aqui. Eu tomo conta de ti…
– Quem é que pensas que és, porra? – berrou o pai ameaçadoramente, investindo contra o Joey. – Achas que sabes tudo, rapaz? Achas que és melhor do que eu? – Apertou a sua enorme mão à volta do pescoço do Joey e forçou-o a ajoelhar-se. – Achas que a podes levar para longe de mim? Ela não vai a lado nenhum! – O pai pressionou com mais força, empurrando a testa do Joey contra o chão de tijoleira. – Avisei-te que te ia ensinar boas maneiras, seu bastardinho ingrato. – Pôs o joelho contra a parte de baixo das costas do Joey, deixando-o impotente. – E agora, achas que és um homem, rapaz? Mostra à tua mãe o tipo de homem que és, a chorar de joelhos como uma cabrita.
– Para! – gritou a mãe, puxando os ombros do meu pai. – Sai de cima dele, Teddy.
– Sou mais homem do que tu – sibilou o Joey, com a voz abafada pela força que tinha de fazer para se aguentar com o peso do nosso pai a pressioná-lo.
– Oh, achas que sim? – O pai agarrou um punhado de cabelo do Joey, puxou-o para trás e depois bateu-lhe com a cara na tijoleira. – És um bocado de merda, rapaz.
A cuspir sangue, o Joey firmou as mãos na tijoleira mais uma vez e içou o corpo para cima, a tentar desesperadamente, sem sucesso, libertar-se do meu pai, que continuava a martelar-lhe a cara contra a tijoleira. O som de ossos a esmagarem-se invadiu os meus ouvidos, e o meu estômago revolveu-se, mas o Joey recusou-se a ceder.
– É tudo o que consegues? – Mostrou os dentes, o sangue a reluzir entre o branco, enquanto rosnava e lutava selvaticamente contra o aperto do pai. – Estás a perder a mão, velhote!
– Sai de cima dele! – continuava a gritar a mãe enquanto puxava os ombros do pai. – Teddy, vais matá-lo!
– Ótimo! – gritou o pai, atirando um braço para trás e batendo na mãe mais uma vez. – E tu vais a seguir, sua puta vira-casacas!
A tremer violentamente, eu precisava de fazer alguma coisa, mas não conseguia. Não conseguia fazer com que os meus membros se mexessem. Não me restavam sequer forças para me reerguer.
Anos de maus-tratos, à mistura com a sova que tinha acabado de levar, tinham-me conduzido ao ponto de, apenas com dezasseis anos, não conseguir manter-me sobre os meus pés.
Continuava pateticamente desabada na cadeira onde o Joey me tinha posto, com sangue a correr do rosto e o coração a abrandar-me no peito.
Estava a morrer, apercebi-me. Isso, ou o meu corpo estava a entrar em choque. De qualquer das formas, alguma coisa estava muito errada comigo, e não conseguia ajudar a única pessoa que nunca tinha falhado em ajudar-me. Com a cabeça a girar loucamente, vi, através do meu olhar vitrificado, que o Joey conseguira torcer o corpo de lado, apenas para os dois acabarem a lutar no chão.
O meu coração caiu-me a pique no estômago quando o pai ficou outra vez por cima. Com a mão enrolada à volta da garganta do Joey, fechou o punho e começou a socá-lo na cara de forma repetida. O Joey resistia o máximo que conseguia debaixo dele, a tentar por tudo tirá-lo de cima, mas era inútil. O nosso pai tinha pelo menos mais vinte quilos.
Ele vai morrer, gritava o incêndio no meu coração. Salvem-no.
Eu tentei.
Enlouquecida de pânico, tentei alcançar o Joey, mas não conseguia mexer-me. Sentia-me como se estivesse paralisada.
– Ajudem-na – consegui ouvir a voz estrangulada do Joey, a tossir e a engasgar-se. – Ajudem-na, porra!
Ajudar quem?
Ajudar quem, Joe?
De poucos em poucos segundos, a minha visão desaparecia, e sabia que isso significava que estava a entrar e a sair de um estado de inconsciência. Também sabia que isto era um mau sinal, que me alertava para o facto de que ele me tinha magoado muito mais do que anteriormente.
Muito mais.
Pelo canto do olho, reparei que o Tadhg se aproximava do armário. Abrindo uma das gavetas, retirou uma faca, e sem um segundo de hesitação, investiu.
Fá-lo. Enviei uma prece silenciosa aos céus para darem ao meu irmão a coragem de o fazer.
– Sai de cima do meu irmão! – gritou o Tadhg, enquanto encostava a ponta da faca à garganta do nosso pai, a mão firme como uma rocha, os olhos fixos no nosso pai.
– Tadhg, baixa essa faca – gritou a mãe, a mover-se lentamente na sua direção. – Por favor, querido.
– Vai à merda – replicou o Tadhg, sem nunca tirar os olhos do nosso pai. – Sai. De. Cima. Do. Meu. Irmão.
Fá-lo, Tadhg, rezava em silêncio, faz com que isto acabe de vez.
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