O diploma, datado de 19 de julho de 1918, foi publicado no “Diário do Govêrno” um mês depois de as sufragistas terem voltado a exigir o direito de voto, num documento entregue ao então Presidente da República.

O debate estava na ordem do dia e as mulheres começavam a desempenhar funções tradicionalmente destinadas aos homens, como o caso de Regina Quintanilha, a primeira mulher a licenciar-se em Direito e a exercer como advogada.

A Ordem dos Advogados presta-lhe homenagem, ao assinalar, na página de internet, a publicação do decreto (4676) da Secretaria de Estado da Justiça e dos Cultos e o percurso da pioneira.

“Às mulheres munidas de uma carta de formatura em Direito é permitido o exercício da profissão de advogados, ajudante de notário e ajudante de conservador”, lê-se no diploma.

Regina Quintanilha faria a sua estreia como advogada antes do decreto de 1918. Em 14 de novembro de 1913 estreava-se no Tribunal da Boa Hora, após conseguir uma autorização do Supremo Tribunal de Justiça.

Na extensa lista de bastonários da Ordem, criada por decreto de 1926, há apenas duas mulheres: Maria de Jesus Serra Lopes, a primeira advogada a ocupar o cargo, em 1990, e Elina Fraga, eleita em 2013.

“A Regina Quintanilha é importantíssima”, disse à agência Lusa a historiadora Irene Pimentel, recordando que a Constituição de 1911 permitia já às mulheres trabalharem na Função Pública, pelo que o decreto terá vindo reconhecer ou regulamentar uma realidade em curso.

Deixava, no entanto, a ressalva de que cargos dirigentes continuariam destinados aos homens: “Tam só se não deverá perder de vista que, iguais embora em capacidade de inteligência e de trabalho, há contudo, funções de direção e de iniciativa que naturalmente estão reservadas para o homem”.

Era igualmente permitido às mulheres, "em igualdade de habilitações com os homens", desempenhar as funções de ajudantes dos postos e das repartições do registo civil.

8 portuguesas pioneiras nas profissões liberais e no ativismo
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Ao mesmo tempo, explicitava-se que a lei portuguesa ainda não acompanhava o direito ao voto, referindo as “tam adiantadas sociedades anglo-saxónias”, onde era já comum “a concessão” desse direito político às mulheres.

“Sem se poder acompanhar ainda em Portugal esse cada dia mais largo reconhecimento da competência e da concorrência feminina, é já porém mester reconhecer o facto da frequência das mulheres nos cursos de instrução secundária e superior e o consequente direito do advento das diplomadas ao exercício das profissões liberais”, determinava o diploma.

A legislação era sobre trabalho, mas o legislador aproveitava para clarificar a questão do voto no mesmo diploma.

Havia já ocorrido o caso de Carolina Beatriz Ângelo, viúva, chefe de família e com a instrução requerida na lei, que conseguiu votar nas eleições para a Assembleia Constituinte, alegando ter todas as condições.

“A Constituição de 1911 não dizia que só os homens é que podiam votar”, refere Irene Pimentel. “Evidentemente que aquilo foi muito complicado, porque houve todo um processo em que o próprio regime disse que ela não podia votar”.

Primeiro, o recenseamento não foi aceite. “Ela colocou o caso em tribunal e apanhou um juiz que era filho de outra feminista, Ana de Castro Osório”, recorda Irene Pimentel, que estudou o caso, juntamente com o de outras mulheres da I República e, depois, do Estado Novo.

A decisão acabaria por ser favorável, uma vez que Beatriz Ângelo era portuguesa e tinha todas as condições para votar, segundo a lei, conforme interpretaria também o juiz.

Seguir-se-ia uma nova lei de voto que destinava o sufrágio político exclusivamente aos homens. “O problema é que isto continua, porque elas podem trabalhar e fazer muitas coisas, mas o voto é que não”, observa a historiadora.

8 portuguesas pioneiras nas profissões liberais e no ativismo
8 portuguesas pioneiras nas profissões liberais e no ativismo Beatriz Ângelo, Ana de Castro Osório e Adelaide Cabete

O curto período do sidonismo teve “algumas leis benéficas para as mulheres”, assinala Irene Pimentel, sublinhando a importância do elemento feminino no regime.

“Os ditadores – e o Sidónio foi um ditador – e depois mais tarde Mussolini (a partir de 1922), e, em Portugal Salazar, contam com as mulheres, quer no lar, quer também para que convençam os maridos no apoio às novas ditaduras”, defende.

Tanto Regina Quintanilha como Carolina Beatriz Ângelo faziam parte de uma elite com capacidade para recorrer a outras instâncias na luta pela emancipação.

O voto apenas viria a tornar-se universal em Portugal após a revolução de 1974.

Igualdade entre homens e mulheres evoluiu de forma lenta

A secretária de Estado para a Cidadania e Igualdade considera que a sociedade portuguesa evoluiu de uma forma mais lenta do que o desejável no último século, no que se refere às diferenças de oportunidades entre homens e mulheres.

Em declarações à agência Lusa a propósito dos cem anos da publicação do decreto, a 19 de julho de 1918, que permitiu às mulheres portuguesas o desempenho de várias funções públicas, Rosa Monteiro frisou que durante o Estado Novo, até 1962, as mulheres estavam proibidas de trabalhar na administração local, na carreira diplomática, na magistratura judicial e nos postos de trabalho no Ministério das Obras Públicas.

Professoras primárias tinham de pedir autorização ao Ministério da Educação para se casarem. As restrições foram mitigadas pela Revolução de 1974, mas ainda têm reflexos nas disparidades que persistem, nomeadamente na administração local.

“As mulheres são apenas 2,5% do total dos dirigentes de primeiro e segundo grau” neste setor, afirmou, citando dados atuais.

A legislação foi evoluindo, mas questões culturais e as baixas taxas de escolarização contribuíram para um atraso relativamente a outros países, nomeadamente no Norte da Europa, observou.

“Tudo isto está na origem de um grande atraso”, disse, reconhecendo que o voto foi “fundamental no reconhecimento dos direitos políticos das mulheres”.

Hoje o debate em torno das questões de género faz-se pelo acesso aos lugares de topo das hierarquias e das remunerações.

De acordo com a governante, não há por vezes uma discriminação direta, mas persistem “tetos de vidro”, desigualdades que não se veem, que afastam as mulheres dos lugares dirigentes de primeiro e segundo grau.

O problema, assume, não se resolve por decreto e tem na origem questões culturais.

“É preciso pôr em prática aquilo que a lei descreve. É preciso formar as pessoas, as famílias, as instituições educacionais e laborais para que se alcance uma sociedade igualitária e sustentável”, defendeu.

Segundo Rosa Monteiro, foi lenta a possibilidade de as mulheres acederem sem restrições a qualquer profissão ou cargo de direção, mas mais lento ainda é “o processo de mudança cultural, transformação e materialização efetivamente visível de uma sociedade igualitária”.

De acordo com a Síntese Estatística do Emprego Público, no primeiro trimestre de 2018, num total de 674.379 funcionários, 269.756 são homens e 404.623 mulheres, o que dá uma taxa de feminização de 60%.

Entre os representantes do poder legislativo, a taxa baixa para 25,9%, com 1.743 homens e 610 mulheres.

Os dados relativos ao emprego no setor das administrações públicas indicam ainda que nos dirigentes superiores, a taxa de feminização é de 36%, entre 1.599 trabalhadores.

Nos dirigentes de primeiro grau, o valor é de 26,9% (158 mulheres, num total de 588 pessoas).

A percentagem começa a subir quando se chega à categoria de dirigente de segundo grau, atingindo os 41,4% (418 mulheres, num total de 1.011 funcionários).

Nos dirigentes intermédios, encontram-se já valores positivos e as mulheres começam a estar em maioria: 49,6% no primeiro grau e 55,7% no segundo grau.

Por grupos profissionais, a taxa de feminização mais elevada encontra-se na categoria “técnico superior de saúde” (86,7%) e mais baixa no pessoal de segurança (3,4%) e nos bombeiros (3,6%).

Rosa Monteiro considera que para o que o princípio da igualdade entre homens e mulheres seja “plenamente implementado” é imprescindível a existência de leis, tanto a nível nacional, como comunitário, na defesa dos direitos de todos nos vários setores da sociedade.