Em 2014, uma parede branca com inúmeros nomes inscritos despertou a atenção de João Neto. O maratonista encontrava-se em Nova Iorque sob um frio tremendo. A prova de estrada tinha início dentro de minutos. A curiosidade de João Neto contou com uma resposta: os nomes indicavam todos os que haviam terminado a World Marathon Majors, prova corrida em seis cidades, em diferentes continentes. Um desafio para o maratonista então com 48 anos.
João Neto começara a correr aos 45 anos, primeiro para “matar tempo”, depois com o empenho e perseverança que o diretor-geral e fundador da Teleaplicação coloca em tudo o que faz.
Este 2022, João Neto ofereceu aos escaparates o livro Correr sem limites (edição Oficina do Livro), prova de vida do seu percurso familiar, profissional e desportivo. O maratonista e ultramaratonista correu, até ao momento, 31 maratonas e ultramaratonas e levou a sua vontade de vencer aos extremos, literalmente, ao correr nos polos Norte e Sul e próximo ao polo de altitude terrestre, o Monte Evereste, nos Himalaias.
Em entrevista, percorremos diferentes geografias e desafios, assim como os desabafos de João Neto: “espero que um dia os meus filhos se lembrem que os meus feitos não foram comprados, foram conquistados”. Na conversa do maratonista há sempre um tributo à família.
À pergunta sobre se se sente “sobre-humano” (como lemos na capa do seu livro), João Neto sorri. A resposta do maratonista não tem a escala de um Olimpo, situa-se na dimensão humana e no trabalho.
João Neto ainda não teve a oportunidade de visitar o local onde se inscreve o seu nome numa parede em Nova Iorque. O português integra o grupo restrito dos que cumpriram os desafios da World Marathon Majors.
Intitulou o seu livro Correr sem Limites. Pelo que depreendemos da leitura da obra não se trata apenas de uma corrida geográfica, há neste correr um outro sentido.
Há, de facto. As pessoas perguntam-se se é um livro sobre corrida. A expressão “correr sem limites” é uma metáfora para a vida. Se avaliarmos bem as nossas vidas, passamo-las a correr, seja na verdadeira aceção da palavra, seja nas nossas profissões, na gestão da vida familiar, um quotidiano rápido e, quantas vezes, efémero. Creio que o livro, se a memória não me falha, tem perto de 18 capítulos sobre corrida, tudo o mais está relacionado com outras corridas, mas não com os pés [risos].
Fez do seu livro um registo autobiográfico?
Muitas vezes ouvi que a minha vida dava um livro. Esta expressão enraizou-se e acabou mesmo por dar um livro. Sou uma pessoa muito acelerada, tenho sempre muitos afazeres, seja na vida profissional e pessoal, nos treinos e nas metodologias. Vou tomando notas sempre que possível para não me esquecer de episódios que podem ser relevantes para um dia serem transcritos de forma mais completa. Sobre se há uma componente autobiográfica no livro: com toda a modéstia do mundo, acho que seria um desperdício, tendo em contas as experiências que felizmente tive a oportunidade de viver até ao momento, não deixar esse legado a alguém, mais não seja ao leitor que não me conhece. Ou seja, a componente biográfica é importante para fazer um enquadramento a tudo o que lhe é subjacente.
Há ainda uma outra questão que levo para o livro: atualmente, as pessoas têm um problema gravíssimo, o de estabelecerem compromissos e de os conseguirem honrar. Muitas vezes, o compromisso cai por terra sem qualquer satisfação. Acho que este livro tem a vantagem de aflorar temas como o que acabei de referir. No fundo, pode ser lido pelo gestor de empresas, pelo pai, pelo filho, pela pessoa que está em casa desmotivada, pela outra que está muito motivada. A obra tem o objetivo de refletirmos sobre o que é importante nas nossas vidas.
Falou de compromissos. O seu livro também apresenta um compromisso com a sua família?
Sim. Como imagina, uma pessoa com o meu dinamismo, por vezes não consegue chegar da forma como mais gostaria a todo o lado, nomeadamente à família. Os meus filhos foram bastante prejudicados pelo facto de eu viajar muito, dedicar um tempo infindável aos treinos, à preparação do corpo e da cabeça. Por outro lado, também os ensina que temos de lutar pelas coisas. Para termos sucesso temos de trabalhar muito. Espero que um dia, no futuro, os meus filhos se lembrem que os feitos do pai não foram comprados, foram conquistados.
Atualmente, as pessoas têm um problema gravíssimo, o de estabelecerem compromissos e de os conseguirem honrar.
Na introdução ao livro, o seu filho, André Neto, sublinha a sua “ambição” como o adjetivo que melhor o define. Como define o João Neto esta ambição?
Sou naturalmente uma pessoa ambiciosa. O sucesso depende da emoção que colocamos naquilo que fazemos. Quando me empenho, faço-o a sério, dou o meu melhor. Quero deixar marca, seja no que for, numa corrida de moto, a pedalar, a correr, numa apresentação de trabalho. Não obstante, a não ser que ganhe, o que é pouco provável face a tipos com menos 25 anos do que eu [risos], acho que posso sempre fazer melhor. É esta a ambição que refere o meu filho. Quando algo não me corre bem, retorno à base, analiso o que não esteve bem de forma a aumentar a minha probabilidade de sucesso. Ou seja, acho que nunca dei tudo.
Nas primeiras páginas do seu livro compara o início de uma maratona ao início de um livro ou de uma obra de arte. Há similitudes?
Todos os dias temos estados físicos e psíquicos diferentes. É um facto incontornável. Quando começamos qualquer obra, seja esta qual for, não sabemos como a concluiremos. Quando começamos um projeto, e a maratona é um projeto, nunca sabemos o que nos acontece ao corpo, à cabeça, ao destino um segundo depois. Ou seja, na frase que refere estamos perante uma metáfora. Uma maratona é um projeto, requer toda a atenção e dedicação. Às tantas as pessoas banalizam o que é uma maratona, mas é algo muito duro.
A maratona é um bálsamo nas dificuldades da vida?
Sim, porque uma pessoa quando está numa maratona, especialmente nas provas extreme, em situação de limite físico, psicológico, aquilo acaba por ser um bálsamo porque a dedicação tem de ser total. Qualquer coisa que não implementemos ou que nos cause distração, vai-nos transtornar meia dúzia de quilómetros mais à frente. Por exemplo, aceleramos no primeiro quarto da prova, sentimo-nos bem, mas, na realidade, vamos pagá-lo caro mais à frente. Quando concluímos a prova há um grande descarregar de adrenalina, uma conquista que nos rejuvenesce.
Quando começamos um projeto, e a maratona é um projeto, nunca sabemos o que nos acontece ao corpo, à cabeça, ao destino um segundo depois.
Começou a correr aos 45 anos o que podemos considerar normal. Mas, fazer o que já fez volvidos poucos anos...
Não gostava de correr, sequer. Andava muito de bicicleta, nadava, pratiquei artes marciais, desportos motorizados, esqui. Começou durante os treinos de futebol do meu filho André. Tinha de “queimar” algum tempo enquanto esperava por ele. Na época, tinha sofrido uma lesão ao andar de bicicleta o que me impediu de pedalar cerca de um ano. Procurei um desporto que fosse simples e com uma logística fácil. Pareceu-me que a corrida me daria uma boa preparação física, ocupar tempo e iniciar uma atividade. Não imaginei que chegaria ao nível que atingi. Quando nos focamos só no sucesso e visibilidade, distraímo-nos com questões colaterais e acabamos por nos perdermos.
Ainda se recorda do que sentiu ao cruzar a meta na sua primeira maratona?
Perfeitamente. A prova terminava em Belém e, quando avistei o local pensei que a maratona estava a acabar. O que fiz? Acelerei para acabar em grande. O nosso mindset está formatado para aquele lugar, a meta. Na realidade, a prova tinha mais três quilómetros, ia a Algés e regressava. Foram três quilómetros que me custaram pela vida [risos]. Enfim, lá conclui a prova e tive os meus 30 segundos de vitória. Vale esse tempo. A partir daí a vida volta ao normal e regressamos ao estatuto de comum dos mortais. Aliás, nunca o deixamos de ser.
Parte sempre para uma maratona como se fosse a primeira?
Sim, a dedicação tem de ser total. Gosto de me pautar por seguir os melhores para um dia, se possível, ser como eles. Cada vez que arrancamos para uma prova desta natureza, algumas em situações extremas e limites, nunca sabemos se voltamos ou não, se corre bem ou mal. Por exemplo, recentemente fui para o Evereste num voo a aterrar em Lukla, nas montanhas, com um aeroporto perigosíssimo. Se vou para o Polo, não sei qual será o comportamento do gelo. É este tipo de situação que me fascina, o de não saber o que vai acontecer no segundo seguinte.
Quantas maratonas já correu? Sabe quantos quilómetros acumulou nestas provas?
Ao dia de hoje (novembro de 2022), 31 maratonas e 1308 quilómetros percorridos. Mas a questão não é essa. Cada uma das maratonas que fiz em condições extremas valem por muitos mais quilómetros.
Quando dou por mim, estava com dois objetivos em simultâneo, o World Marathon Majors e o World Marathon Challenge.
Como entra no circuito World Marathon Majors?
Por mero acaso. Corri a maratona de Lisboa em 2013 e, na época, ainda não havia a atual cultura da corrida. Fui um entre as 300 ou 400 pessoas que se candidataram à prova. Achei que era uma pessoa altamente relevante [risos]. Entretanto, inscrevi-me no sorteio para ir correr a maratona de Nova Iorque. Em 2014, quando chego a Nova Iorque estavam 37 mil pessoas a correr. Afinal era mais um no meio de dezenas de milhares. Ali, reparo numa parede repleta de nomes inscritos. Estes indicavam as pessoas que tinham concluído a World Marathon Majors, as seis principais maratonas de estrada do mundo [Chicago, Londres, Boston, Nova Iorque, Berlim e Tóquio]. Pensei, “aí está um projeto para mim”. Candidatei-me. Já 'só' faltavam cinco maratonas. Corri-as de acordo com aquilo que o calendário permitia e acabei em 2018, na cidade de Boston. Na altura havia 18 ou 19 portugueses com a prova completa. Achei que era por aquilo que tinha de lutar. Uma vez mais, chegamos ao início da nossa conversa. De repente, aparecem-me desafios muito mais exclusivos e exigentes do que aquele. Não obstante isso, não me podia esquecer daquele. Quando dou por mim, estava com dois objetivos em simultâneo, o World Marathon Majors e o World Marathon Challenge. Mas não iria desistir do primeiro, há que ser coerente com os princípios que defendo.
Disputou a única maratona que se faz sobre um oceano, no Polo Norte, num mês de abril. Nove horas a correr num ambiente extremo. O que se sente nesse momento?
Até hoje houve dois portugueses a correr essa maratona [João Neto e João Bandeira Santos]. Estamos a falar do paralelo 89.2 Norte, a 70 quilómetros de distância do Polo Norte geográfico, com uma sensação térmica de -40ºC e os -50ºC. Terminei os 42.195 metros da prova em cerca de nove horas. Findo o ano de 2017, tinha corrido maratonas nos dois extremos do mundo, no Polo Norte e no Polo Sul, na Antartic Ice Marathon.
O João Neto faz parte de um clube restrito de maratonistas..
Sim. Quem consegue dar uma volta ao mundo, ou seja, correr uma maratona em sete continentes, em sete dias seguidos [Antártida, África, Austrália, Ásia, Europa, América do Norte e América do Sul], entra num grupo restrito, o InterContinental Marathon club Members. A par, sou membro do Marathon Grand Slam Club, porque corri em sete continentes aos quais acresce o Polo Norte.
A World Marathon Challenge mais se assemelha a um contrarrelógio...
Sim. Na World Marathon Challenge participei em 2019. Corri, a 31 de janeiro uma maratona na Antártida, segui para a África do Sul a 1 de fevereiro e corri nova maratona na Cidade do Cabo. A 2 de fevereiro estava na Austrália, em Perth, a 3 no Dubai, a 4 em Madrid, a 5 na América do Sul, em Santiago do Chile e, finalmente, a 6 de fevereiro em Miami, nos Estados Unidos. A vida durante sete dias é essa. No total combinado das provas, corremos 295 quilómetros. A recuperação entre provas faz-se no avião, a 42 mil pés de altitude, enquanto nos deslocamos de uma maratona para a outra.
Como se prepara uma pessoa para um desafio com esta dimensão?
Estamos a falar de tudo levado ao limite e isso é fascinante nesta prova. Ou seja, a preparação tem de ser intensiva. Na altura achava que era autossuficiente. Às tantas, comecei a perceber que não podia continuar a ser autodidata. Tinha lesões constantes, algumas poderiam tornar-se graves. Quando corri a primeira vez na Antártida, rapidamente percebi que não podia continuar sozinho. Nesse momento procurei encontrar um treinador [Paulo Conde]. Tendo em conta a minha idade não foi fácil alguém aceitar. Houve que convencê-lo daquilo que pretendia para ter sucesso. Fiz o meu trabalho da melhor forma que sabia fazer, tentei ao máximo ter as melhores equipas de pessoas de acordo com as minhas perspetivas. A partir daí comecei a preparar a corrida de trás para a frente. A preparação faz-se com muita dedicação, nadava, escalava, treinava dentro das câmaras frigoríficas de um hipermercado [risos].
Mas há uma grande diferença entre correr numa câmara frigorífica e fazê-lo nos polos…
Estive três vezes nesses ambientes extremos [no Ártico em 2017 e na Antártida em 2017 e 2019]. O frio é tremendo. Senti duas coisas, primeiro um deslumbre incrível, depois a vontade de despachar o que ali me tinha levado. O responsável pela organização tinha-nos dito: “vocês estiveram meses ou anos a prepararem-se para aquele momento, chegam lá e querem ir-se embora”. E tinha razão. Há, claro, os receios naturais de quem está numa situação extrema como aquela, mas também nos sentimos uns felizardos.
Quando acabei a volta ao mundo, queria juntar ao facto de já ter estado no extremo norte e no extremo sul do globo, o de correr no extremo de altitude, próximo ao Evereste.
Presumo que tenha sentido felicidade idêntica nos Himalaias...
Sim. Quando acabei a volta ao mundo, queria juntar ao facto de já ter estado no extremo norte e no extremo sul do globo, o de correr no extremo de altitude, próximo ao Evereste. Já tinha a preparação feita e achei que era o momento ideal para ir à ultramaratona dos Himalaias, a Tenzing-Hillary Everest Marathon. Acontece que tinha duas hérnias inguinais decorrentes dos treinos. Quando findei a prova mundial fui operado, com uma recuperação de seis meses, e não fui à prova asiática. Como em tudo na minha vida, definidos os objetivos, tenho de os concluir. Volvidos três anos, este ano de 2022, “voltei à guerra”, regressei aos treinos para correr a maratona mais alta do mundo, a mais de cinco mil metros de altitude.
Uma prova difícil…
É dificílimo, cada 100 metros custam-nos um horror dada a rarefação do ar, corremos sobre calhaus, gelo e neve. São três semanas a subir. Nos últimos sete dias nem a roupa tirei. As condições são absolutamente precárias. Víamos pessoas a serem resgatadas de urgência com baixas de 50% de oxigénio no sangue.
O João Neto está a preparar alguma maratona neste momento?
Neste momento tenho de me dedicar novamente à empresa. A minha ausência tem um preço que é elevadíssimo.
Finalmente, na capa do seu livro lemos as palavras “maratonista sobre-humano”. Depois de todo este caminho sente-se mais sobre humano ou mais humano?
[risos] Sinto-me mais humano. Não me considero nada sobre-humano. Tudo o que consigo é fruto de trabalho, não de nenhuma característica particular.
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