Vivemos num mundo ruidoso. Sobrepomos conversas, afirmamos pontos de vista, gerimos a nossa marca pessoal nas redes sociais, cuidando que acumulamos “gostos” e seguidores. Aprendemos a liderar conversas, a motivar e a confiar na tecnologia como potenciadora das nossas opiniões. Mas, será que realmente estamos a ouvir os outros? E quem nos escuta? A norte-americana Kate Murphy, jornalista, colaboradora nas páginas do jornal “New York Times”, lançou-se numa investigação sobre a arte perdida de saber escutar o próximo. Kate entrevistou centenas de pessoas, em cinco continentes, apoiou-se em estudos de sociologia, psicologia e neurociência para nos revelar tudo o que perdemos quando não escutamos o outro.

Em Portugal, a jornalista chega aos escaparates com o livro “O que perde quando não está a ouvir” (edição Planeta). Mote para o SAPO Lifestyle falar com a autora e perceber como retomarmos o caminho empático de sabermos escutar.

Questão que se torna premente numa época marcada pelo afastamento social provocada pela crise pandémica em torno da COVID-19: “com o mundo efetivamente em pausa por causa da pandemia, esta é uma oportunidade extraordinária para ouvir aqueles que nos estão próximos” refere a autora. “Só assim seremos capazes de melhorar o conhecimento de nós próprios, aumentar a nossa criatividade e felicidade e nos relacionarmos verdadeiramente com os outros”.

O seu livro ensina-nos a “arte perdida” de saber ouvir e fazer-se ouvir. Em que ponto da história humana perdemos essa qualidade?

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É um processo gradual. Ao longo do século passado, à medida que a tecnologia competia cada vez mais pela nossa atenção, o tempo médio que as pessoas dedicavam a ouvir-se durante as horas de vigília diminuiu quase para metade. E a tendência só se acelerou com as empresas de tecnologia que desenvolvem aplicações e dispositivos especificamente projetados para se apropriarem da nossa atenção. É claro que não é apenas a tecnologia o motor para esta questão, também existem fatores sociais, políticos, psicológicos e até ambientais que nos impedem de ouvir.

Desde tenra idade, temos a falsa ideia de que ouvir é ser submisso. Somos ensinados a liderar a conversa, não a segui-la. Além disso, divisões políticas e conflitos culturais tornaram quase herético escutar ou mesmo falarmos com pessoas que têm opiniões opostas. A cacofonia da vida moderna também nos impede de ouvir. O barulho do trânsito, a música direcionada para restaurantes e lojas, o som da televisão por cabo, dificulta o prestar atenção e o ouvir o que as pessoas dizem. Resumindo, existem vários fatores, que conjuntamente, ao longo do tempo tornaram a escuta uma arte perdida.

Porque deixámos de escutar os outros? Jornalista norte-americana Kate Murphy visitou cinco continentes para encontrar a resposta
Kate Murphy é uma jornalista de Houston, Texas.Trabalha áreas como a saúde, tecnologia e ciência. créditos: Editora Planeta

Ouvir e escutar está na nossa natureza, somos seres atentos e curiosos. Porque criamos estratégias para não escutar?

Não aprendemos nada quando falamos. Tudo sai e nada entra. Ouvir é a forma como reunimos inteligência, desenvolvemos ideias, estimulamos a criatividade e alcançamos a sabedoria. Também é essencial para estabelecer e manter relacionamentos estáveis ​​e seguros. É assim que encontramos amigos e nos apaixonamos. Uma mulher que entrevistei para o livro disse de forma memorável: "A coisa mais sexy que um homem pode fazer é ouvir-te". E isto é tão verdadeiro.

Desde tenra idade, temos a falsa ideia de que ouvir é ser submisso. Somos ensinados a liderar a conversa, não a segui-la.

Quais os comportamentos dos maus ouvintes?

Entrevistei centenas de pessoas nos cinco continentes e todos tiveram dificuldade em me dizer o que significava ser um bom ouvinte. Contudo, não tiveram problemas em referir o que significava ser um mau ouvinte. A triste verdade é que temos mais experiência com maus ouvintes do que com bons ouvintes. Os comportamentos mais citados, relativos a maus ouvintes incluem interromper, responder vagamente ou sem conexão ao que foi dito, olhar para um telefone, relógio, ao redor da sala ou, de outra forma, estar "distante" de quem está a falar. É também comum referir-se a inquietação, como tocar na mesa, mudar de posição frequentemente, clicar numa caneta.

As redes sociais tornaram-nos piores ouvintes?

As redes sociais estão relacionadas com a autopromoção, com o cultivar a marca pessoal. As pessoas estão preocupadas em acumular “gostos” e seguidores. Trata-se de chamar a atenção e não de a dar, o que é o oposto de ouvir. As pessoas também costumam relacionar-se com as redes sociais, em vez de, ou durante, terem interações cara a cara, o que degrada ainda mais a audição. Ouvir é uma aptidão e, como qualquer aptidão, degrada-se se não a praticarmos o suficiente ou continuamente a praticamos mal.

conversa
créditos: Etienne Boulanger

O cérebro humano reage positivamente a uma conversa entre bons ouvintes?

Os neurocientistas descobriram que, quando há entendimento entre os indivíduos, os cérebros, de quem fala e de quem ouve, espelham-se. Há uma sincronização visível, ou sobreposição, dos padrões neurais. E, com isso, a libertação de todos os tipos de moléculas químicas que proporcionam sensação de bem-estar. Um psicólogo que entrevistei designou estes momentos de "fragmentos de magia". Partilhar esse sentimento com outra pessoa é uma das melhores coisas de estar vivo.

As redes sociais estão relacionadas com a autopromoção, com o cultivar a marca pessoal. As pessoas estão preocupadas em acumular ´gostos` e seguidores.

Não corremos o risco de, por nos tornarmos bons ouvintes, nunca sermos escutados?

De modo nenhum. A melhor forma de conseguir que alguém nos ouça é ouvir essa pessoa. Isso ocorre, em parte, porque a natureza humana devolve cortesias. Mas também porque os melhores comunicadores são aqueles que conhecem seu o público ou audiência. Não se tornará envolvente, claro ou convincente, a menos que conheça os interesses, sensibilidades e nível de entendimento da outra pessoa. Depois de conseguir desenvolver essa inteligência, saberá como criar uma mensagem que realmente ressoe.

kate murphy
créditos: Editora Planeta

Na elaboração do seu livro consultou, por exemplo, negociadores de reféns. Que contributo trouxeram?

Entrevistei Gary Noesner. Antes de se reformar, foi o principal negociador de reféns do FBI. Na realidade, como me disse, era o "principal ouvinte" da agência. É um equívoco pensar-se que os negociadores de reféns devem ser realmente persuasivos; que apresentam argumentos realmente bons e que convencem as pessoas a depor as armas e libertar os prisioneiros.

Noesner disse que se trata, realmente, apenas de ouvir a pessoa e descobrir o que a levou a cometer esse ato desesperado. Reconhecer os sentimentos dos sequestradores e ouvi-los com frequência era suficiente para resolver a situação. Pesquisas mostram que os criminosos mais violentos tendem a sentir-se profundamente alienados da sociedade. Eles têm uma sensação permanente de que ninguém os ouve nem compreende, e eles deixam também de ouvir, movidos apenas pelas coisas muitas vezes distorcidas que dizem a si mesmos.

É difícil ouvir, mesmo nos melhores momentos, mas a audição pode realmente cair no esquecimento durante momentos de stresse e ansiedade.

A Kate escreveu um artigo no "New York Times" sobre o saber ouvir neste tempo de pandemia. O que nos pode dizer sobre o assunto?

É difícil ouvir, mesmo nos melhores momentos, mas a audição pode realmente cair no esquecimento durante momentos de stresse e ansiedade. Aqueles que estamos a experienciar agora. As pessoas podem refugiar-se em si mesmas, alienar-se ou talvez fiquem muito analíticas, críticas ou pedantes, numa tentativa subconsciente de controlar a conversa quando tudo o resto é incontrolável.

O resultado é desconexão, afastamento, alienação e até irritação, exatamente quando precisamos mais uns dos outros. Com o mundo efetivamente em pausa por causa da pandemia, esta é uma oportunidade extraordinária para ouvir aqueles que nos estão próximos, ou aqueles que desejamos que estejam mais próximos.

Recebi muitos e-mails de pessoas que leram o meu livro e disseram que manter a distância física de outras pessoas as tornou mais conscientes da sua distância emocional. Disseram que aprender a ouvir melhor os ajudou a sentirem-se mais ligados durante este período difícil. Um colega disse-me que liga a um amigo ou membro da família todos os dias para perguntar o que veem do lado de fora das janelas e tal conduziu-o a algumas das conversas mais interessantes e íntimas da sua vida.


Entrevista inicialmente publicada em agosto de 2020.