Viver com um pacemaker não é uma escolha pessoal – é uma decisão que garante a melhoria da qualidade de vida daqueles a quem o coração pediu uma ajuda para funcionar correctamente. Mas e quando é uma criança a ter de implementar um pacemaker? Que aspectos do seu dia-a-dia são influenciados por este pequeno aparelho?
Os pacemakers vieram para ficar. Graças ao extraordinário avanço da tecnologia, permitiram passar de cirurgias complicadas, que acarretavam grandes riscos para o paciente, para cirurgias simples, rápidas e seguras. Adequados às necessidades específicas de cada pessoa, actualmente os pacemakers fazem parte da vida diária de milhões de pessoas, possibilitando-lhes uma vida normal, sem limitações.
O coração, esse órgão fundamental ao bom funcionamento do nosso organismo, por vezes, falha. Dependemos tanto da força e do bom funcionamento do coração que são poucas as vezes em que pensamos que ele afinal não passa de um músculo oco, composto por quatro câmaras – as duas superiores, denominadas aurículas e as duas inferiores, chamadas ventrículos. Órgão que trabalha incansavelmente sem disso nos apercebermos, o coração é responsável por bombear o sangue por todo o corpo, batendo 70 vezes por minuto, bombeando mais de 5 litros de sangue por minuto. É, de facto, um trabalho de Golias!
Uma obra perfeita que, por vezes, falha. Quando o coração perde a capacidade de produzir o número de batimentos necessários à sua função, é necessário proceder à implantação de um pacemaker. Este mais não é do que um pequeno aparelho electrónico, composto por duas partes – o gerador, que detecta as alterações do ritmo do coração, produzindo o estímulo necessário para o fazer bater; e o cabo eléctrico, que une o coração ao gerador, transmitindo o ritmo cardíaco. Uma tecnologia louvável, de implantação fácil, que produz resultados estrondosos.
O pacemaker e os mais pequenos
Por vezes, surgem complicações com os batimentos cardíacos dos mais pequenos. Felizmente, para a implantação de um pacemaker não existe uma idade mínima, possibilitando deste modo um estilo de vida normal a quem já nasceu com este problema. “Na maioria dos casos, as crianças que necessitam de um pacemaker têm uma doença congénita do tecido de condução: um bloqueio aurículo ventricular completo”, explica a Dr.ª Conceição Trigo, cardiologista pediátrica do Hospital de Santa Marta.
Cada caso é um caso, e o pacemaker é adequado às necessidades de cada indivíduo. Deste modo, a escolha do pacemaker a ser implementado depende “do tipo da doença de base, da idade da criança – privilegiando em crianças mais novas, recém-nascidos ou lactentes, geradores mais pequenos, quer em peso, quer em espessura”, afirma Conceição Trigo.
O pacemaker garante a sincronia entre a aurícula e o ventrículo, permitindo às crianças levar uma vida normal, sem existirem cuidados em particular a ter após a cirurgia. O acompanhamento médico posterior limita-se a um seguimento com uma periodicidade semestral. A criança, não tendo outras contra-indicações, pode fazer exercício físico, estando apenas interdita de praticar desportos de contacto que impliquem riscos de traumatismo ou aqueles em que “exista suspensão pelos membros superiores, tais como rugby ou judo”, esclarece a cardiologista.
Desmistificar mitos antigos
São várias as informações erróneas que circulam na cultura popular da nossa sociedade associadas ao uso de um pacemaker. Conceição Trigo desmistifica alguns deles. “Um dos maiores medos das famílias dos portadores de pacemaker é que este deixe de funcionar subitamente”, refere. “Esta situação não acontece e nas consultas de seguimento é avaliado o estado da bateria, o que permite evitar qualquer surpresa.” Ideias formadas de que um utilizador de pacemaker não pode aproximar-se de aparelhos eléctricos são igualmente falsas, como clarifica Conceição Trigo. “Nas actividades quotidianas, o pacemaker não induz limitações, e actualmente podem ser utilizados na proximidade todos os dispositivos electrónicos domésticos (telemóveis, microondas, playstation…), sem risco de interferência.”
Existem, sim, alguns cuidados a ter. “O portador de pacemaker não deve ser sujeito aos arcos de detecção de metais, pelo risco do campo electromagnético em que operam interferir com a programação” do aparelho, avisa a especialista. De igual forma, “a realização de ressonância magnética está também interdita a estes doentes, embora actualmente existam já novos dispositivos que permitem a realização deste exame”, conclui.
Outra dúvida bastante recorrente prende-se com a duração de vida de um pacemaker. O tempo exacto de substituição do gerador de um pacemaker varia consoante as condições clínicas do paciente, do seu estilo de vida, entre muitos outros factores. De qualquer forma, quando o gerador necessitar de ser substituído, é feita uma intervenção mínima, onde apenas se reabre a pele de modo substituir o mesmo, não sendo necessário proceder à mudança de todo o sistema.
Um caso de vida
Marina Moreira estava no quinto mês de gravidez quando o médico obstetra detectou que, por vezes, existia a falha de uma batida cardíaca, o que levou a que começasse a ser seguida no Hospital de Santa Marta, em Lisboa. Marina conseguiu manter-se calma perante a situação: “O bebé era grande e continuava a crescer, e a gravidez era tranquila, pelo que apenas existia uma pequena inquietação associada a toda a novidade de, em breve, sermos pais”, relembra.
A gravidez correu bem e Emanuel, nome escolhido para o pequeno lutador, nasceu sem problemas de maior. A implantação do pacemaker foi feita aos 9 meses de idade, “o que levou a que não tivesse qualquer noção do que se estava a passar, nem nós lho conseguiríamos explicar, nessa altura da sua vida”, afirma Marina.
Uma vida familiar diferente?
A implantação do pacemaker acabou também por ser uma surpresa para os pais, uma vez que a cirurgia que estava prevista tinha apenas como objectivo fechar a comunicação entre os ventrículos. No decorrer da mesma, o cirurgião, o Prof. Dr. Pedro Magalhães, decidiu (e, pelo resultados, muito bem) “que o implante do pacemaker era essencial para que o Emanuel tivesse uma boa qualidade de vida”. A explicação de todo o processo ao Emanuel foi feita de uma forma gradual. “À medida que ele foi crescendo e tendo mais capacidade para compreender as coisas, fomos-lhe dando explicações para o seu estado clínico, até decorrentes de perguntas que ele próprio ia fazendo, devido às cicatrizes e de alguns alertas direccionados a ele, mas que ele não observava a serem aplicados ao irmão.” O Rafael (irmão mais novo) tem agora 12 anos; o Emanuel, 14. O problema detectado durante a gravidez do Emanuel não foi impedimento para uma segunda gravidez planeada e desejada, como nos diz Marina: “Poderia voltar a acontecer o mesmo, mas ainda assim quisemos ser optimistas, e o Rafael nasceu sem qualquer problema”.
A cirurgia do Emanuel não modificou a vida desta família. O Emanuel é igual a qualquer criança da sua idade e o seu relacionamento com o irmão mais novo não foi afectado pela implantação do pacemaker, como constata Marina: “São dois galitos, que crescem à velocidade da luz, sempre em competição saudável um com o outro, no saber, no estar e nos jogos, mas que não sabem viver um sem o outro.”
O pacemaker impõe limitações?
Muitos são os mitos associados à ideia de usar um pacemaker. Se no passado a sua implantação era uma questão de sobrevivência das pessoas com problemas de ritmo cardíaco, neste momento o pacemaker melhora, em muito, a qualidade de vida de muitas pessoas.
As crianças portadoras de pacemaker, ao contrário do que muitas pessoas possam pensar, não têm quaisquer limitações na sua vida diária. “As cicatrizes ficaram perfeitas e quase não se vêem, pelo que só partilha esta intimidade com quem ele entender”, esclarece Marina. “Tal como ele precisa deste aparelho, eu preciso de óculos, bem como outras pessoas precisam de cadeiras de rodas, muletas, sapatos especiais, etc. O importante é que haja soluções cada vez mais eficazes para os desafios que surgem na saúde das pessoas.”
O Emanuel vive com o pacemaker desde que se conhece. Aprendeu a crescer com ele. Tal como os pais. Mas a situação nem sempre é fácil, como não é simples lidar com todos os sentimentos que a vivência acarreta. “No nosso caso, não permitimos que os outros pensassem ou nos minassem com o ‘coitadinho, desabafa Marina. “Nos momentos mais críticos, tentámos estar, o mais possível, de peito aberto, junto dele, para lhe transmitir segurança, alegria e força e aqui contámos muito com a ajuda das ‘senhoras de cor-de-rosa’ do Hospital de Santa Marta (voluntárias), em que o seu trabalho diário é para as crianças quando estão sós, mas que têm sempre um tempinho para um sorriso ou um carinho para os pais, com quem partilham de forma positiva as suas vivências, passando sempre mensagens de esperança.” Uma ajuda que importa salientar e cuja atenção incute força aos pais para lidarem com uma situação que não é fácil. “Olhar à nossa volta foi e é uma ajuda preciosa porque ao nosso lado, e infelizmente, há sempre quem esteja numa situação pior do que a nossa, o que só nos pode dar forças para melhor combatermos o que estamos a passar”, conclui.
Nunca desistir e enfrentar os problemas de frente
Os pais de Emanuel decidiram não procurar informações na Internet, com medo de adquirirem “conhecimentos incorrectos ou interpretações indevidas sobre um assunto para o qual não temos os mínimos conhecimentos”. Aceitaram sempre as informações e conselhos que foram fornecidos pelos médicos e por toda a equipa do Hospital de Santa Marta “e, em especial, a Conceição Trigo, que o acompanha desde que nasceu, sendo que gostaríamos de aproveitar a ocasião para apresentar a todos os nossos sinceros agradecimentos”, refere Marina.
Quando questionada se queria deixar alguma informação que considerasse importante sobre a vivência do Emanuel, Marina não hesita. “Gostaríamos de transmitir que nunca nos deixámos abater e que sempre tivemos a ideia de que deveria partir de nós (o núcleo familiar) a ausência de diferenciação em relação ao Emanuel. Isto é, sempre foi nossa convicção que ele não deveria ser tratado de forma diferente (até porque a sua condição não o faz, efectivamente, diferente)”, de modo a que, “nem ele, nem os outros, o vissem dessa forma. Assim, nunca deixámos de o fazer cumprir as suas tarefas ou de brincar normalmente, tal como fazemos com o irmão.”
Um conselho a elogiar e a repetir a todos os pais que vivenciem a mesma experiência.
Texto: Rute Simões
A responsabilidade editorial e científica desta informação é do jornal
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