Fazer com que a neurocirurgia seja desnecessária no futuro. Este é o desafio que um dos mais famosos neurocirurgiões britânicos lança ao mundo científico. Henry Marsh, que há 35 anos faz este tipo de cirurgia, explica que isso será possível ao «encontrar formas não cirúrgicas de resolver os problemas». Por isso, não é de estranhar que comece o livro «Não Faças Mal» com a frase «tenho de cortar cérebros com frequência e é uma coisa que odeio fazer» e, assim, prende o leitor desde a primeira linha, num relato brilhante e muito humano.
É um dos mais conceituados neurocirurgiões britânicos e no livro «Não Faças Mal» mostra-nos o lado humano dos médicos, muito longe daquilo que vemos em séries que retratam a vida nos hospitais. Essas, diz Henry Marsh, «retratam tudo menos a realidade». A realidade que viveu em 35 anos de carreira, durante a qual lhe passaram pelas mãos 15 mil pacientes. O livro foi considerado o Melhor Livro do Ano pelo The Financial Times, The Economist e o The Huffington Post quando saiu.
A obra é o resultado de um diário, um hábito que começou aos 12 anos e que nunca mais largou. Reformou-se recentemente mas continua a ser presença constante no St. George’s Hospital, onde sempre exerceu e continua a ajudar colegas de países mais pobres. «Duas vezes por ano vou ao Nepal e é um trabalho fascinante», orgulha-se, sem esquecer as desigualdades entre países ricos e pobres que viu por lá.
Não são raras as vezes que critica o Sistema Nacional de Saúde Britânico, não porque não o defenda mas «porque são precisos mais fundos para o apoiar», justifica. Junto dos médicos estagiários não se cansa de estimular os vínculos emocionais entre médicos e pacientes. «Só assim conseguimos perceber o quão assustados estão», diz. E ele próprio só percebeu isso quando o seu filho teve um tumor no cérebro ainda bebé.
Como é que um estudante de economia, filosofia e política, resolve tornar-se médico?
Foram várias as razões que me levaram a decidir ser médico, mas uma das principais é que tinha a ideia de que sendo médico podia usar o cérebro e as mãos. E eu sou uma pessoa muito pratica!
E a neurocirurgia, como surgiu?
Foi uma questão de sorte. Assisti a uma operação a um aneurisma e fiquei fascinado. Foi amor à primeira vista e, após 35 anos de carreira, não estou nada arrependido da escolha que fiz. Continuo a achar que é um privilégio ser médico, particularmente se formos médicos honestos, como eu fui, apesar do preço que tive de pagar em relação à família.
A sua vida familiar foi prejudicada pela sua dedicação à carreira?
Uma das razões que fez com que o meu primeiro casamento acabasse foi o facto de ter colocado o trabalho sempre em primeiro plano. Fui egoísta para a família, mas fui altruísta para os doentes. Felizmente, tenho uma ótima relação com os meus três filhos.
Veja na página seguinte: Um médico deve sofrer com os seus doentes?
No livro é notório que tem um fascínio pelo cérebro. Como é que vê este órgão?
Olhando é apenas uma massa gelatinosa que pesa um quilo e meio. No entanto, sempre li muito sobre neurociência e é muito complicado percebermos o que é o cérebro. Um dos grandes desafios do mundo científico é explicar como é que a matéria física produz sentimentos subjetivos. Isto é algo que damos por garantido, mas quanto mais pensamos nisso, mais extraordinário é.
Mas os 35 anos de medicina ajudaram-no a entender melhor o cérebro?
Não, só me ajudaram a perceber que sei muito pouco.
Na sua opinião, a neurocirurgia é um mix entre arte, ciência e sorte?
Sim, apesar de achar que é um bocado pomposo e vanglorioso falar de arte. Somos uma espécie de artesões e nesse sentido é artístico, mas envolve ciência, pensamento racional e sorte. Contudo, o grande desafio da medicina é a comunicação, isto é, falar com os pacientes.
Na neurocirurgia, lidamos com doenças muito sérias e é por isto que digo que o verdadeiro desafio é saber falar com os pacientes, mas é muito difícil aprender a fazer isso, até porque não temos feedback por partes dos doentes. Nenhum nos diz que estamos a falar bem ou mal. Muitos médicos da minha geração dizem que só começaram a entender os doentes e o que querem quando se tornaram eles próprios ou os familiares pacientes.
Um médico deve sofrer com os seus doentes?
Sim, se não sofrer não percebe o que o doente está a sentir, mas também não podemos sofrer demasiado, se não isso destrói a nossa capacidade de tomar decisões. É quase impossível operar alguém a quem se esteja muito ligado, como um familiar ou amigo, isso torna-nos muito ansiosos.
E com o que é mais difícil ser cirurgião, com um familiar ou um doente?
Quando o meu filho teve um tumor cerebral, em bebé, achei muito difícil ser familiar e durante muitos anos fiz cirurgias pediátricas no meu departamento. Mas quando deixei de as fazer não senti falta, porque lidar com os pais e com a sua dor é muito duro.
Tinha a meu favor o facto de ter passado pelo mesmo que eles e a certo ponto dizia-lhes que sabia o que estavam a sentir e contava-lhes o caso do meu filho. Imediatamente criava uma ligação com esses pais. Eles sabiam que podiam confiar, porque eu sabia o que estavam a sentir.
Quais são os desafios presentes e futuros da neurocirurgia?
É fazer com que seja desnecessária, ou seja, encontrar formas não cirúrgicas de resolver os problemas, isto porque a neurocirurgia é muito crua, tendo em conta a infinita complexidade e delicadeza do cérebro.
Quais são as características que um bom cirurgião deve ter?
Um interminável poder autocritico e ser um bom colega. Mais do que ter umas excelentes mãos, é necessário ser honesto. No passado, um cirurgião britânico costumava dizer que para ser um bom cirurgião era necessário ter nervos de aço, coração de leão e mãos de mulher, e discordo totalmente com isso.
Veja na página seguinte: Os erros que o médico cometeu
Levar a cabo ou não uma neurocirurgia, passa sempre por fazer um balanço entre os riscos de operar e os de não operar?
Absolutamente. É um juízo que temos de fazer antes de tomarmos uma decisão. Quando penso nos erros cometidos por mim e por colegas meus, não tem nada a ver com ter mãos melhores ou piores, mas com decisões erradas. Mas é muito difícil fazer esse julgamento quando não sabemos quais são os verdadeiros riscos. Nesses casos, temos de ser honestos connosco próprios e lembrarmo-nos dos maus resultados do passado.
E os maus resultados estão sempre presentes?
Nós, os cirurgiões, somos muito otimistas e temos uma memória muito seletiva. Costumamos apagar as más memórias porque se não, não fazemos as cirurgias nem ajudamos ninguém. Fazer ou não uma cirurgia é uma questão de pesarmos bem os riscos - estes têm de ser sempre justificados.
E como é que se lida com essa pressão?
Quem vai para cirurgião, em particular para neurocirurgião, gosta de pressão, se não, não conseguiria fazer o seu trabalho. O problema é quando a pressão se torna um comprimido para os grandes egos.
Ao longo dos anos, aprendi que todos cometemos falhas, mas é fundamental que os nossos egos não se tornem perigosos para a nossa profissão. É por este motivo que é muito importante ter bons colegas que nos chamem a atenção e esse é um dos problemas de exercer medicina no privado, onde muitos médicos trabalham isolados, sem colegas que os critiquem.
No livro, mostra muitas vezes sentido de humor este foi importante para si para lidar com toda essa pressão?
Caro que sim! Sou inglês… [risos] Como bom inglês quanto mais sério é o tema, mais piadas faço. O sentido de humor é muito importante.
Arrepende-se de alguma decisão que tomou?
Na verdade, os erros não são muito usuais, mas lembro-me de duas operações em que deixei um paciente paralisado de um braço e outro das pernas.
E em relação à morte, aprende-se a lidar bem com ela?
Em neurocirurgia, os pacientes estão geralmente inconscientes quando morrem, por isso, do ponto de vista do paciente é uma boa forma de morrer sem dor. Do meu lado não tenho de ter longas conversas com os meus pacientes sobre o significado da vida… [risos]
Mas ver pacientes morrerem é duro! É como se estivéssemos a esconder lixo debaixo da carpete. Por outro lado, é sempre difícil falar sobre morte com os pacientes. Nós evitamos e os pacientes também.
Veja na página seguinte: O que o neurocirurgião pensa sobre a morte medicamente assistida
E qual é a sua opinião sobre a morte medicamente assistida?
Eu sou um grande defensor da eutanásia, que já é permitida na Bélgica, na Holanda e em alguns estados americanos. Não concordo com a ideia de que destrói a sociedade e acho que as ideias de que temos de sofrer para morrer e de que a alma tem de ter tempo para se separar do corpo são muito primitivas. Como neurocirurgião e depois de tudo o que vi, não acredito em vida depois da morte e nem sequer em alma.
Mas acha que será possível recorrer à eutanásia na Grã-Bretanha nos próximos tempos?
Apesar da opinião negativa dos políticos, há muitas vozes a favor. As pessoas já perceberam que a eutanásia não é legalizar médicos que matam doentes, mas sim dar aos pacientes a oportunidade de decidirem como querem morrer e, para isso, os doentes têm de estar conscientes. Um paciente com demência, por exemplo, não pode fazer essa escolha.
A demência é um problema muito preocupante…
Sim, estamos a viver muito tempo sem saúde.
Qual é o seu maior medo como médico?
Ficar demente!
E costuma pensar nisso?
Com muita frequência. Não tenho medo da morte, mas da forma como posso vir a morrer.
Tem medo da velhice?
Muito mesmo.
E o que faz para não envelhecer?
Corro todos os dias, ando de bicicleta há mais de 40 anos, pois estudos demonstram que ser ativo diminui as probabilidades de ter cancro, diabetes, doenças cardiovasculares. Fazer exercício regularmente é muito importante, não nos impede de envelhecer, mas ajuda-nos a viver melhor, embora todos tenhamos de morrer um dia.
O que gostava de fazer que ainda não fez?
Gostava de reconstruir uma casa de campo que comprei em Oxford ao lado do canal. Está em condições terríveis e quero ser eu a reconstruí-la. Se calhar é um plano demasiado ambicioso, mas quero muito concluí-lo e vou começar por levantar o muro que está em ruínas.
Veja na página seguinte: As escolhas culturais de Henry Marsh
As escolhas de Henry Marsh:
- Livro
Indicar apenas um não é tarefa fácil. «Leio muito e é difícil destacar um só livro, mas «Sociedade Aberta e Seus Inimigos» de Karl Popper influenciou muito a minha forma de ver o mundo», revela o especialista.
- Música
A clássica reúne as suas maiores preferências. «Do lado materno, venho de uma família alemã muito musical e, apesar de não tocar nenhum, adoro música e Beethoven é excecional, o melhor de todos os compositores», refere Henry Marsh.
- Um lugar em Londres
A escolha recai sobre locais com muito verde. «O Kew Gardens ou o Jardim Real Botânico de Londres, onde gosto muito de passear, e a ciclovia ao longo do rio Tamisa até ao centro de Londres, onde adoro andar de bicicleta», diz o neurocirurgião.
- Férias
As memórias de infância continuam a perdurar. «Os meus pais deixaram-me a mim e aos meus irmãos uma casa de campo no País de Gales, que é um lugar maravilhoso onde gostamos de passar as férias em família», afirma.
- Viagens
São uma das paixões de Henry Marsh. «Só viajo em trabalho e uma das vezes que fui ao Nepal para prestar cuidados médicos, o meu filho foi ter comigo e fizemos um treck de seis dias em Annapurna nos Himalaias e foi ótimo. Depois adorei o norte da Albânia, que é incrivelmente inexplorado como nenhuma outra parte da Europa. E gosto da Córsega!», confidencia.
- Hobbie
A forma como gosta de ocupar os tempos livros surpreende. «Marcenaria, criação de abelhas, ler, escrever e jardinar», revela Henry Marsh.
Texto: Rita Caetano com Lua de Papel (fotografia)
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