A maioria dos factos que os doentes omitem em consulta podem não ser mentiras deliberadas mas podem dificultar ou prejudicar (muito) os diagnósticos médicos e/ou até o próprio tratamento de um determinado problema. De acordo com os especialistas, são resultado da perceção errada que temos dos nossos hábitos, muito mais saudáveis, aos nossos olhos, do que na realidade são. Mas não ficam por aqui!
Há casos em que os doentes escondem doenças, relações extraconjugais, sexo desprotegido, falhas na toma de medicação, pela carga social e moral que acarretam, porque não querem decepcionar o médico ou porque não se sentem suficientemente confortáveis para terem uma conversa franca. Saiba quais os factos que tendemos a omitir no consultório e que podem atrasar o diagnóstico e impedir o tratamento de doenças graves.
1. Faço uma dieta saudável
É a mentira mais comum nos consultórios médicos, segundo Alexandra Fernandes, médica de família. "As pessoas dizem geralmente que comem menos e melhor do que na realidade comem. Esse é o motivo pelo qual os médicos e os nutricionistas recomendam escrever um diário alimentar", refere.
"O que acontece é que as pessoas acabam por verificar que comem muitos mais alimentos calóricos e com menos qualidade nutricional do que pensavam e que fazem muitas mais exceções do que na realidade nos relatam", sublinha. Esta perceção errada da dieta ou a mentira deliberada sobre a alimentação, nomeadamente o não cumprimento das medidas estipuladas pelo médico.
"Além de aumentar o risco das habituais complicações que podem advir de uma dieta pouco saudável [excesso de peso e/ou obesidade, diabetes, hipertensão arterial, doenças cardiovasculares, entre outras, por exemplo], pode atrasar ou impedir um objectivo terapêutico, como a perda de peso, por exemplo", diz ainda a especialista.
2. Estou a seguir a medicação receitada
Dizer ao médico que está a seguir a medicação receitada à risca (quando não está) é outra das mentiras mais comuns no consultório. Esta mentira pode dificultar o controlo de doenças crónicas (a hipertensão arterial, a diabetes e a asma são as mais comuns), o tratamento de outras doenças, como a depressão, ou sujeitar o doente a submeter se a exames perfeitamente dispensáveis.
Alexandra Fernandes reconhece que "é muito complicado tomar um medicamento para sempre". "A tendência é ir experimentando para ver se o consegue deixar de tomar", acrescenta ainda. A especialista alerta ainda que "no caso das doenças psiquiátricas, nomeadamente da depressão, mal se encontre melhor, o doente tende a achar que já não precisa desse tratamento".
"Mas este deve ser feito, pelo menos, seis meses seguidos depois da pessoa estar bem, se não o risco de recaída é muito grande e, portanto, a pessoa está a atrasar e a complicar o seu próprio tratamento", diz. Noutros casos, pode ser simplesmente a impossibilidade de suportar os custos da medicação receitada que leva o doente a mentir.
Mas, para esses casos, a médica de família recomenda falar abertamente com o médico. "Com os medicamentos genéricos, conseguimos dar alternativas muito mais baratas", reforça ainda Alexandra Fernandes, que conhece bem o panorama atual do mercado dos medicamentos.
3. Fumo pouco ou raramente
"As pessoas não têm noção da quantidade de cigarros que fumam por dia e o mais frequente é dizerem que fumam dois ou três cigarros, quando fumam muito mais", refere a médica de família Alexandra Fernandes. Esta omissão pode trazer riscos graves, além dos que são conhecidos como o cancro do pulmão, doenças cardiovasculares, enfarte do miocárdio, AVC, entre outras, quando o consumo de tabaco não é recomendável numa situação clínica específica.
A especialista dá mesmo um exemplo. "Uma mulher com mais de 35 anos que tome a pílula não deve fumar, porque o risco de trombose venosa aumenta significativamente e, se ela disser ao médico que fuma esporadicamente, ele pode sentir-se confortável para lhe receitar a pílula e, no entanto, se ela fumar diariamente, está a aumentar muito o risco de complicações graves", adverte.
4. Não tenho nenhuma doença
São normalmente as doenças que não são socialmente bem vistas as omitidas. É o caso das doenças sexualmente transmissíveis, da síndrome da imunodeficiência adquirida (SIDA), da hepatite B e hepatite C. "Recordo-me de diagnosticar um caso de tuberculose num doente e de vir a descobrir mais tarde que era uma complicação da SIDA. Ele nunca tinha dito que tinha SIDA", desabafa a especialista.
"Esta omissão foi grave porque não me permitia perceber o que se passava com o doente, de forma a poder apoiá-lo na sua saúde e, por outro lado, não me permitia apoiá-lo a tomar as medidas necessárias para evitar o contágio, nomeadamente para fazer os rastreios necessários ao conjugue", conta ainda Alexandra Fernandes.
5. Só tenho sexo com o meu marido
A omissão das relações sexuais extraconjugais é outra situação frequente. "As pessoas omitem-nos frequentemente as relações sexuais extraconjugais porque temem o que o médico possa pensar sobre elas", afirma a especialista. "Cabe ao profissional de saúde transmitir a ideia de que não irá elaborar nenhum juízo de valor, de forma a colocar o doente à vontade e, por outro lado, o doente também deve lembrar-se de que tudo o que é dito ao médico ficará sob sigilo profissional", refere ainda.
Só existe uma exceção à regra do sigilo do médico. "Quando um doente tem uma doença sexualmente transmissível e o médico sabe que ele tem relações sexuais desprotegidas com outra pessoa que não está informada. Neste caso, o médico tem a obrigação de informar essa pessoa porque está em causa um grave risco de saúde e vida que se sobrepõe ao valor do segredo profissional", esclarece a especialista.
6. Bebo socialmente e pouco
"Muitos doentes, sobretudo homens, dizem só beber dois ou três copos por dia, quando bebem muito mais", refere a médica de família. Quando há situações de consumo excessivo, são os familiares que acabam por ajudar o médico a diagnosticar a situação. "Muitas vezes, estou a dar consultas a homens, e são as esposas, que estão ao lado, que dizem que eles bebem mais do que me estão a dizer", refere Alexandra Fernandes.
"Nas mulheres, esta omissão pode ser ainda mais natural pelo facto do alcoolismo nas mulheres ser menos bem visto socialmente", afirma ainda. O consumo excessivo de álcool, além de ter repercussões físicas, psicológicas, sociais e morais, pode dificultar o controlo de doenças crónicas, como é o caso da hipertensão arterial e o tratamento de doenças, porque o álcool anula o efeito dos medicamentos.
7. Uso contracetivo
É uma mentira muito frequente, nas consultas de planeamento familiar, particularmente nas mulheres que recorrem à contraceção de emergência ou à interrupção voluntária da gravidez. "Praticamente nenhuma mulher tem coragem de dizer que não estava a fazer contraceção", afirma Alexandra Fernandes. "Nas consultas de rotina, verificamos que muitas mulheres sexualmente ativas não usam qualquer tipo de contraceção", diz.
Muitas, sem o assumir, recorrem ao método do coito interrompido, "que é pouco eficaz, e/ou posteriormente à pílula do dia seguinte", alerta a médica de família. "Esta deveria ser apenas para situações de emergência, porque a sua taxa de falha é mais elevada do que a da pílula anticoncecional de rotina", refere, contudo, esta profissional.
A especialista alerta ainda para o facto de a interrupção voluntária da gravidez também não deve ser encarada como uma segunda oportunidade para evitar uma gravidez. "Atualmente, vemos mulheres que recorrem à interrupção voluntária da gravidez como método de planeamento familiar, quando este deveria se o último recurso, depois de tudo ter falhado", constata.
"Além de ter consequências para a saúde física e psicológica da mulher, principalmente quando é feita de forma repetida, do ponto de vista ético, é uma situação muito grave porque não deixa de atuar sobre a vida de um ser humano, numa fase inicial do seu desenvolvimento", conclui ainda a médica de família.
Texto: Sofia Santos Cardoso com Alexandra Fernandes (médica de família)
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