Utilizando “Avatares” de peixe-zebra, um modelo animal desenvolvido no Laboratório de Desenvolvimento do Cancro e Evasão Imunitária Inata da Fundação Champalimaud (FC), liderado por Rita Fior, Mayra Martínez-López – antiga aluna de doutoramento do laboratório, hoje na Universidad de las Américas em Quito, Equador – e colegas estudaram os passos iniciais da acção da vacina Bacillus Calmette-Guérin (BCG) nas células do cancro da bexiga. Os seus resultados, publicados hoje (8 de agosto de 2024) na revista Disease Models and Mechanisms, mostram que os macrófagos – a primeira linha de células imunitárias activadas após uma infeção – induzem, literalmente, as células cancerosas ao suicídio e, em seguida, devoram rapidamente essas células mortas.
A ideia por detrás dos Avatares de peixe-zebra (zAvatars), que ainda constituem um modelo experimental, mas muito promissor, é bastante simples: retirar células tumorais de um doente com cancro e injectá-las em embriões de peixe-zebra. Os tumores crescem então no interior dos embriões, que assim se tornam de facto avatares desse doente oncológico. As várias opções de tratamento disponíveis para esse doente podem então ser testadas nos zAvatars – e, numa questão de dias, em vez das várias semanas, ou mesmo meses, que são necessários com os testes tradicionais em ratinhos, será possível determinar o melhor tratamento para cada doente. O teste foi desenvolvido e estudado com amostras de doentes com cancro colorretal.
Fior tinha uma nova ideia para o modelo. “Quando entrei para o laboratório da Rita, como aluna de doutoramento [em 2019]”, recorda Martínez-López, “estávamos a discutir vários projectos que eu poderia realizar e a Rita mencionou que a vacina BCG estava a ser utilizada em doentes com cancro da bexiga”. Martínez-López tinha sido vacinada com BCG contra a tuberculose em criança, na América do Sul, e mais tarde, trabalharia nesta doença. “Mas foi a primeira vez que ouvi falar da vacina contra a tuberculose como tratamento do cancro”, salienta. O que lhe desperto logo a atenção e quis logo agarrar o projecto.
A história de uma ideia
A vacina BCG foi utilizada pela primeira vez contra a tuberculose na década de 1920 e, por volta de 1976, foi a primeira imunoterapia a ser utilizada contra o cancro. Mas quase um século antes, nos anos 1890, William Coley, um cirurgião que trabalhava no Hospital de Nova Iorque (atualmente Weill Cornell Medical Center), já tinha testado uma mistura de diferentes bactérias, designadas por “toxinas de Coley”, como imunoterapia contra o cancro!
Coley tinha notado que vários doentes com cancro no hospital, praticamente sem esperança, entravam em remissões aparentemente “milagrosas” do seu cancro quando apanhavam uma infeção bacteriana após a cirurgia realizada para remover os seus tumores (naquele tempo, as condições de esterilização nos procedimentos cirúrgicos não eram das melhores). E pensou que essas recuperações, longe de serem milagrosas, deviam-se na realidade a uma resposta imunitária dos doentes à infeção.
Coley começou a tentar induzir infeções bacterianas em vários doentes com sarcoma e conseguiu produzir algumas remissões de doentes com cancro. Na altura, porém, o seu método estava longe de ser comprovado e seguro – e, entretanto, tinham sido desenvolvidos outros métodos de tratamento, como a radioterapia, pelo que a sua investigação não continuou. Mas nos últimos anos, o campo da imunoterapia tem ganhado um enorme impulso, trazendo novas formas de estimular o sistema imunitário, cientificamente mais robustas, para combater o cancro.
“A imunoterapia com BCG ainda é utilizada de forma bastante empírica”, diz Martínez-López. “No entanto, como funciona em muitos casos, tornou-se um tratamento de referência. Surpreendentemente, é uma imunoterapia muito eficaz, mesmo quando comparada com tantas imunoterapias sofisticadas que estão a ser desenvolvidas."
O tratamento consiste em instilar a vacina BCG diretamente na bexiga. Quando funciona, a taxa de sobrevivência a 15 anos para os doentes com cancro da bexiga dito “não músculo-invasivo” (em fase inicial) é de 60% a 70%. No entanto, em 30% a 50% dos casos, os tumores da bexiga não respondem ao tratamento com BCG. Nestes casos, a bexiga tem de ser totalmente removida.
São os macrófagos!
Até agora, a forma como a vacina BCG atua como imunomodulador para eliminar os tumores da bexiga não era totalmente conhecida.
A ideia da equipa da FC era que as células imunitárias, e em particular os macrófagos residentes na bexiga, estivessem envolvidas. E conseguiram determinar o que acontece logo após a injeção de BCG em Avatares de peixe-zebra. Para o efeito, utilizaram a chamada microscopia light-sheet (“folha de luz”) e confocal, o que lhes permitiu ver os macrófagos a interagir com as células tumorais, com uma resolução de célula única e em tempo real.
Os coloridos filmes que obtiveram do processo desencadeado pela vacina (em que os macrófagos e as células cancerosas foram marcados com diferentes pigmentos fluorescentes) mostraram que os macrófagos são fortemente recrutados para o local do tumor após a injeção de BCG, matando diretamente as células do cancro da bexiga através de um processo de suicídio celular (apoptose) dependente de uma substância chamada fator de necrose tumoral (TNF) segregada pelos macrófagos, que atua como uma potente molécula sinalizadora do sistema imunitário.
Além disso, constataram que, quando os macrófagos eram retirados do zAvatar, os efeitos anti- tumorais da vacina BCG eram totalmente bloqueados, demonstrando assim que os macrófagos são de facto cruciais para a resposta anti-tumoral inicial provocada pela vacina.
“O que a Mayra viu”, diz Fior, “foi que se injetarmos BCG, temos um aumento acentuado da quantidade de macrófagos que se dirigem para o tumor”. E mais: na presença da BCG, as células imunitárias mudavam de cor, de vermelho para amarelo, o que significava que estavam a expressar TNF.
“Nós não só desvendámos os mecanismos envolvidos nos primeiros passos da acção antitumoral da vacina, como também demonstrámos que o modelo zAvatar é uma poderosa ferramenta pré-clínica para a descoberta de medicamentos em oncologia”, conclui Martínez- López.
Comentários