O HealthNews conversou com Susana Pinto Almeida, psiquiatra no Hospital Prisional São João de Deus, sobre a doença mental em Portugal e o videocast “Questionar É Elemental”, a nova fase da campanha “Depressão Sem Rodeios”.
HealthNews- Qual a importância de iniciativas como o videocast “Questionar É Elemental”?
Susana Pinto Almeida (SPA)- Estas iniciativas são extremamente importantes. Acho que a pandemia alertou para a necessidade de informar as pessoas sobre a doença mental e a saúde mental, o que fazer para promover a saúde mental, o que fazer para evitar ter problemas de saúde mental, que não são necessariamente doenças mentais. Esta iniciativa é excelente e de louvar porque traz às pessoas o tema pela voz de profissionais e de pessoas que já passaram por situações destas. A voz na primeira pessoa é também muito importante, e também é muito importante termos informação válida, assente em evidência científica.
Esta iniciativa é excelente por tudo isto e muito mais vantagens que poderá ter, quer ao nível da sensibilização, para estarmos atentos a sintomas; que há tratamentos e quais são; todo o tipo de abordagens a estas questões que esta série vai trazer ao conhecimento das pessoas. É muito bom.
HN- Como é que vai participar? Qual a importância da conversa que teve?
SPA- O podcast em que eu participo é sobre não ter cabeça para nada. É com uma colega neurologista e assenta exatamente nesta questão de não termos cabeça para nada e nos esquecermos das coisas, termos dificuldade em estar concentrados, em executar funções que habitualmente são simples – mas, quando estamos com uma situação de doença depressiva, passam a ser muito difíceis. A depressão tem vários agrupamentos de sintomas; neste podcast, é o agrupamento cognitivo, ou seja, os sintomas ao nível da nossa capacidade de raciocinar, planear as coisas, antecipar o futuro, tomar decisões. Portanto, esta área tão específica da depressão é o tema deste podcast.
Não é uma forma de olhar para a depressão muito comum. A depressão é uma tristeza anómala, doente, excessiva; uma incapacidade de sentirmos prazer com as coisas. Portanto, há um núcleo dos afetos que está primordialmente afetado. Mas o nosso cérebro não trabalha só com aquele núcleo. Tem participação em tudo da nossa vida. Esta doença afetiva vai causar alterações ao nível do nosso pensamento, da forma como raciocinamos e pensamos as coisas, e nos relacionamos com o meio à nossa volta, com as outras pessoas, e mesmo a nossa capacidade de nos abstrairmos e nos projetarmos além da realidade e do momento presente. Isto é muito próprio do ser humano, e estes sintomas são um bocadinho colocados em segundo plano, quando, julgo eu, não deveriam ser.
HN- Como é que se explica a elevada prevalência de problemas de saúde mental em Portugal?
SPA- Problemas de saúde mental não são necessariamente doença mental. Eu acho que é importante que as pessoas compreendam isto – até porque é fácil, se nós pensarmos no que aconteceu com a pandemia. Para termos um diagnóstico de doença mental, há um critério que é fundamental: a perda de funcionalidade da pessoa. A sintomatologia tem de afetar a capacidade de funcionamento da pessoa. Ora, no período de pandemia nós não conseguimos realizar esta asserção. Ou seja, eu posso ter uma situação em que tenho sintomas depressivos, de facto, que até são compreensíveis num contexto tão específico, tão raro como é a pandemia. Mais estranho para mim seria se não tivessem aumentado os problemas de saúde mental, porque, obviamente, há uma privação da liberdade que é necessária, mas que vai contender com aquilo a que estamos habituados no nosso dia a dia, e de repente a nossa vida quotidiana fica virada do avesso.
Neste contexto, o ser humano vai reagir, como é óbvio. E vai reagir do ponto de vista psíquico e com sintomas. Mas teremos que ter muita parcimónia para passarmos dos sintomas para o diagnóstico de uma doença mental. Teremos de ter bastante cautela com essa transição. E estou a pensar precisamente neste aspeto que é fundamental: alterações ao nível da funcionalidade da pessoa, o prejuízo da sua capacidade funcional, que tem que ser aferida. Nós não fazemos este teste durante uma pandemia porque não podemos, porque a realidade do quotidiano e do nosso relacionamento, de todos nós, mudou. É preciso muita cautela. Fazer um diagnóstico de uma doença mental é um ato médico de excelência e tem de ser feito com razoabilidade.
Neste contexto, aquilo que eu posso dizer é que o aumento de problemas de saúde mental na população portuguesa foi altíssimo, como noutros países, principalmente no primeiro ano da pandemia, porque nós somos um ser que tem essa capacidade de se adaptar às circunstâncias à medida que vamos andando no tempo. O tempo é um fator fundamental para uma avaliação da nossa capacidade psicológica. Essa capacidade psicológica de nos adaptarmos começa a ser eficaz ao fim de algum tempo.
Há uma coisa que se verificou na pandemia que acho importante nós sabermos. Verificou-se uma maior afetação de quem já tinha um diagnóstico de doença mental. E isso é compreensível. Estou-me a recordar de um estudo que abrangia um diagnóstico realizado até um ano antes da pandemia. Durante a pandemia, essas pessoas tiveram maiores dificuldades e um agravamento da sua saúde mental, mesmo estando em tratamento. Se eu já tenho uma vulnerabilidade psíquica, mesmo que esteja tratada e bem, vai-se perceber depois em termos de ajustamento psicológico e psíquico – vai ser diferente e mais difícil. A grande preocupação deverá ser aquelas pessoas que viram a sua vida mudar radicalmente tendo já este problema.
HN- O estigma continua forte em Portugal?
SPA- Ele existe sempre e todos os dias quem trabalha nesta área percebe que ele está lá. A desmistificação, elucidar, informar as pessoas de que existem determinados preconceitos e mitos relacionados com a depressão é fundamental. Estando informadas, as pessoas vão começar a questionar aquilo que lhes dizem. Esta série em concreto contribui imenso para que isso aconteça.
Por exemplo, a depressão é associada à pessoa ser fraca, ou ser menos capaz que as outras, ou ter problemas emocionais que a fragilizam mais, e à personalidade. Há uma série de preconceitos e de falsas crenças que se mantêm. Mas quem estiver com conhecimento da situação, fiável e assente em evidência científica, vai poder explicar porque é que não é assim.
Há muitíssima desinformação na internet e até em vídeos de algumas clínicas conhecidas. Estou-me a lembrar de uma situação em que ouvi que se o amigo está deprimido o que se pode fazer é convidá-lo para tomar um copo. Isto é completamente desadequado. Ou dizer: anima-te, deixa lá isso, não te preocupes. Esta desvalorização é como se estivéssemos a dizer à pessoa que está dependente dela mudar o seu estado de doença, o que é gravíssimo. Não está dependente de mim, se eu tiver uma hipertensão, mudar os meus valores da tensão arterial.
HN- Quais são os principais desafios em Portugal?
SPA- O principal desafio é identificarmos a doença mental de uma forma precoce. A doença mental é algo que se impõe na pessoa e que tem uma causa multifatorial. Não podemos controlar todos os fatores que concorrem para que aconteça a depressão, ou uma doença mental. O que é realmente importante é identificá-la precocemente. No caso concreto da depressão, se as pessoas souberem o que é, os sintomas, como é que evolui, qual é o tipo de tratamento, as intervenções não farmacológicas que existem, e que são importantíssimas… Num quadro depressivo que é ligeiro, a intervenção não farmacológica, numa fase precoce, pode até ser suficiente; mas nem sempre as coisas acontecem assim, ou quase nunca surgem desta forma. Um desafio para a questão da depressão é ter psicólogos junto das pessoas no Serviço Nacional de Saúde, na comunidade. E não só. Sabemos hoje que as crianças e os adolescentes foram muitíssimos afetados pela pandemia, muito mais que os adultos. É uma área muito importante, que precisa de ser encarada e estudada.
A pedopsiquiatria é uma área muito esquecida, eu até arriscaria dizer negligenciada, e é importantíssima. Há uma incongruência entre a importância que nós atribuímos às intervenções médicas e, depois, a prática dessas intervenções, que às vezes é nenhuma. Estas crianças e estes adolescentes vão crescer e vão acabar na psiquiatria de adultos se assim for o caso. Nós compreendemos e conseguimos traçar uma evolução do percurso histórico-biográfico desta pessoa, e às vezes é triste pensarmos que, talvez, a pessoa poderia ter tido uma evolução diferente na sua forma de ser e de estar e em termos de doença mental.
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