Em algum momento da nossa vida, é normal que a memória nos falhe. Às vezes, os esquecimentos são inofensivos, como não nos lembrarmos do que tínhamos intenção de fazer quando nos levantámos do sofá. Outras vezes, acarretam algumas consequências, como por exemplo, termos as chamadas “brancas” durante um exame decisivo ou uma reunião importante.

Nesses momentos tememos a perda de memória. Mas será que devemos ficar preocupados? A esta e outras perguntas responde a neurologista e diretora da Clínica de Memória, Belina Nunes, no seu livro Memória de Ferro (edição Manuscrito). Uma obra para diferentes fases da vida que, entre outras abordagens, se detém na questão dos fatores que prejudicam a memória. Neste âmbito, a autora identifica a idade e envelhecimento cerebral, a insónia e doenças do sono, a depressão, ansiedade e stress e o abuso de substâncias, nomeadamente drogas e álcool.

É sobre o abuso de substâncias e as suas consequências para a memória que publicamos um excerto do livro Memória de Ferro. Deste capítulo retemos que “o consumo de substâncias nos jovens, ainda que de forma recreativa, poderá ter implicações negativas na aprendizagem e na saúde do cérebro a longo prazo”.

Abuso de substâncias

Homero, no canto IV da Odisseia, conta-nos que Helena “no vinho que bebiam pôs uma droga que causava a anulação da dor e da ira e o olvido de todos os males. Quem quer que ingerisse essa droga misturada na taça, no decurso desse dia, lágrima alguma verteria: nem que jazessem à sua frente a mãe e o pai...”. E acrescenta que “tais drogas para a mente tinha a filha de Zeus, drogas excelentes, que lhe dera Polidamna, a esposa egípcia de Ton, pois aí a terra dadora de cereais faz crescer grande quantidade de drogas: umas curam quando misturadas, outras são nocivas…”.

As culturas que rodeavam o Mediterrâneo conheciam bem os efeitos do vinho, mas também do ópio (a droga de que nos fala Homero) e da canábis. Do cânhamo não teciam apenas os fios, queimavam e aspiravam o seu fumo, e há indícios de uso de THC (substância psicoativa da planta da canábis) com fins terapêuticos para atenuar a dor ou ajudar na morte. Os romanos recorriam ao ópio para terminar a vida, pois era considerado quase como um dever para o cidadão romano não permitir a deterioração do seu corpo ou mente.

cérebro
cérebro créditos: Pawel Czerwinski/Unsplash

Se a humanidade desde há muito usa drogas para atenuar as dores físicas e mentais, e para esquecer, ainda que de modo fugaz, as durezas da vida, o interesse das neurociências pelos seus efeitos é mais recente. A ciência pretende conhecer os mecanismos que sustentam o uso das substâncias e que levam à dependência, já que não é suficiente conhecer os efeitos nocivos do seu uso para evitar a recorrência do consumo.

A 'normalização' do consumo excessivo de álcool nas festas universitárias não é de hoje, mas tem-se vindo a intensificar.

Uma das grandes preocupações nesse sentido prende-se, precisamente, com os efeitos do consumo prolongado destas substâncias na saúde do cérebro e na memória. O cérebro humano, mas também o dos animais (os roedores constituem o principal modelo de estudo dos efeitos da adição a substâncias), modifica-se em termos sinápticos com o consumo de drogas psicoativas. A cocaína, por exemplo, cria sinapses ditas silenciosas, funcionalmente ativas apenas para codificação de memórias associadas ao consumo e à sua procura subsequente, induzindo a recorrência de consumo.

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Os hipocampos estão envolvidos na dependência, dado que o uso destas substâncias estimula a sua atividade; na interrupção do consumo (seja de cocaína, opioides, anfetaminas, álcool) existe uma reação condicionada de aversão aos efeitos de abstinência que leva de novo ao consumo.

Os mecanismos condicionados do cérebro são muito intensos, rápidos e independentes dos circuitos neocorticais, reflexivos e conscientes. Por isso, permanecer abstinente não é uma questão de vontade, pois em grande parte não depende do neocórtex, mas sim das estruturas límbicas da motivação, recompensa e evitamento da dor e mal-estar.

Deste modo, as estratégias com mais hipóteses de sucesso têm que ver com o esquecimento, o apagar das memórias; por isso, o tratamento dos dependentes implica passar longos períodos afastados dos estímulos que despertam as memórias associadas ao consumo. Se estas forem de novo ativadas, recomeça o ciclo de dependência.

Os efeitos na memória e na cognição do consumo dos diversos tipos de drogas são significativos e mais graves em certas circunstâncias.

Desde logo em função da idade, do tipo de consumo e da existência de patologia neuropsiquiátrica associada. Na adolescência, o cérebro passa por um processo de intensa maturação neuronal, que nem sempre tem a melhor tradução em termos comportamentais, como todos sabemos. O controlo de impulsos afrouxa com a inundação hormonal do cérebro, e é o período da vida do desafio dos limites e do fascínio pelo risco. É nesta fase que geralmente se inicia o consumo de álcool e drogas, sendo este muitas vezes recorrente e excessivo. Partindo do princípio de que a adolescência é um período de importante reorganização neuronal, o consumo pode induzir riscos acrescidos em termos de despertar sintomas psicóticos, como alucinações, e agravar sintomas depressivos, com aumento do risco de suicídio. E mesmo que o jovem consiga evitar os efeitos da dependência, o consumo de drogas, ainda que de forma recreativa, poderá ter implicações negativas na aprendizagem e nas próprias escolhas de vida presente e futura.

O tratamento dos dependentes implica passar longos períodos afastados dos estímulos que despertam as memórias associadas ao consumo.

A complacência dos pais e dos poderes públicos pode ter efeitos permanentes na saúde dos jovens. Um jovem que aos 13 ou 14 anos começa a beber em excesso, fuma canábis ou usa anfetaminas ou ectasy, vai ter consequências a médio e longo prazo em termos de saúde mental e física.

A “normalização” do consumo excessivo de álcool nas festas universitárias não é de hoje, mas tem-se vindo a intensificar, como demonstra o estudo de Trigo e colaboradores (2022), desenvolvido com 503 estudantes universitários de Coimbra. Os resultados revelam valores elevados, com 73,8% das estudantes e 56,3% dos seus colegas a relatarem consumos excessivos nos meses de festas académicas, em particular de shots de elevado teor alcoólico — e com relato de maior prevalência de consumo entre elementos do sexo feminino.

Também o fenómeno do binge drinking tem vindo a aumentar em Portugal, numa replicação de comportamentos mediáticos pelos adolescentes, aliás semelhante ao que acontece noutros países europeus. E embora esta seja uma tendência que tende a diminuir nos estudantes mais velhos, os números de consumo continuam a ser altíssimos para o que seria desejável.

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Tão preocupantes, ou talvez até um pouco mais, são os resultados também publicados recentemente (Miranda, 2022) sobre o uso de substâncias psicoestimulantes pelos estudantes de medicina portugueses, num estudo que analisou 1156 participantes. Embora o café seja o estimulante mais usado, o metilfenidato foi utilizado em 35% dos casos, e o modafinil em 10%. Trata-se de substâncias sujeitas a receita médica; no entanto, apenas cerca de metade dos estudantes terá tido aconselhamento médico prévio. Estas substâncias são psicoestimulantes, maioritariamente procuradas durante a época de exames como solução mágica para conseguir estudar horas a fio e garantir melhores resultados nas pautas. O modafinil é usado no tratamento da narcolepsia de doentes com perturbação da vigília, que adormecem com facilidade e de modo repentino. O metilfenidato é usado para o tratamento do transtorno do défice de atenção e hiperatividade. Apesar de a sua compra depender de prescrição médica, são vários os sites que os vendem, publicitando o modafinil como a pílula da inteligência que permite manter-se acordado por longos períodos de tempo.

Se os anos 70 do século passado eram a época das anfetaminas, agora é a vez de o modafinil e o metilfenidato serem as “drogas da moda”.

A interação das drogas com a memória é bastante complexa, difere de substância para substância e depende da idade e situação física e emocional do consumidor, bem como da regularidade e quantidade do consumo. Existe no entanto investigação recente que pretende demonstrar eventual benefício do canabidiol na memória, essencialmente realizada em modelos animais, sendo o conhecimento ainda muito insuficiente para a sua aplicação em patologias como a doença de Alzheimer.