O primeiro governo constitucional assumia, no seu plano de governo, que a situação nas urgências não era satisfatória. Após este diagnóstico, foi natural que um dos objetivos para a legislatura tenha sido a resolução dos problemas nos serviços de urgência.
Entretanto passaram-se 50 anos. Continuamos a escrever o mesmo diagnóstico e a tentar alcançar o mesmo objetivo. Verdade seja dita, o problema não é exclusivamente nacional. Atravessa vários países, de todos os continentes e de todos os sistemas de saúde existentes.
Os problemas que afligem estes tipos de serviços têm a sua génese tripartida. Para começar, antes de se chegar à urgência, ou as decisões que o cidadão toma para utilizar estes serviços. As razões são multifatoriais, não se restringido a apenas um motivo. Podemos elencar o cada vez maior número de residentes sem acesso a equipas de família completas, o desconhecimento daquilo que os centros de saúde podem fazer e seus horários, a rigidez laboral que não protege os trabalhadores em caso de doença, o que os impele para um racional “mais vale perder um dia na urgência onde farei tudo, do que dois dias no centro de saúde”, sem esquecer as expetativas modernas que o cidadão tem com a saúde. A sociedade caminhou para o instante. O tempo tornou-se imediato, desde a forma de consumir notícias aos tempos políticos. É natural que a saúde também seja afetada por esta dinâmica, e desta forma, algo não urgente rapidamente se transforma em urgente. Por fim, a publicidade e incentivos à utilização dos serviços de urgência privados, não ajudam para contrariar esta tendência.
Nesta fase pré-urgência, de forma realista, há muitos objetivos que podemos ambicionar atingir. Aumentar o nível de literacia em saúde dos cidadãos, aumentar a cobertura por parte de equipas de saúde familiar, criar condições para que os cuidados de saúde primários possam dar resposta a doença aguda, percebendo que não basta alargar administrativamente o horário das unidades. Nestas condições, além de recursos humanos e materiais, porque não introduzir os equipamentos de análises rápidas no local de atendimento? Muitos doentes poderiam não ser referenciados para os serviços de urgência, se o médico de família tivesse acesso, em questão de minutos, a hemogramas, marcadores cardíacos ou de infeção. E sem esquecer a integração de cuidados. Ao aproximar o hospital da comunidade, o médico de família pode ter consultoria de um internista, cardiologista ou neurologista, através de um rápido telefonema, o que novamente, evita referenciações ao serviço de urgência.
A fase seguinte diz respeito ao serviço de urgência propriamente dito. Urgências sobrelotadas são um perigo para os utentes. Aumenta o risco de infeções cruzadas, de erros clínicos ou de agravamento das condições iniciais que levaram o utente ao hospital. Há várias medidas que poderíamos implementar, começando pelo reforço das equipas com real contratação de novos elementos, ao invés de manter a aposta neste modelo de externalização de serviços, que além de sair mais caro, não oferece garantias de cobrir as necessidades dos serviços, especialmente em épocas críticas de férias, nem garante a qualidade ou oferece oportunidades formativas. Para esta contratação poder ser uma realidade, é necessário oferecer autonomia às instituições e rever os salários e carreiras. Quando médicos e enfermeiros ganham menos hoje que no período pré-troika, torna-se fácil entender que se torna bastante difícil reter estes profissionais no SNS. Os processos das urgências devem ser refletidos e otimizados. A maioria foram definidos há décadas, quando não havia computadores e as condições de saúde da população eram outras. Devemos refletir seriamente sobre todo o percurso físico e administrativo que o utente faz, cortando com passos desnecessários que apenas geram entropia. Quanto mais rápido houver uma decisão sobre o que fazer a cada doente, mais ganhamos todos. Por fim, é igualmente necessário redefinir as competências de cada profissional. Os enfermeiros poderiam assumir o tratamento de alguns sintomas, e início do processo de investigação laboratorial, deixando os médicos com mais tempo para os que mais doentes estão. Do ponto de vista do cidadão, é totalmente diferente aguardar 4 horas, só para dar início ao processo de cura dos sintomas e investigação, do que esperar o mesmo tempo já com este processo iniciado, cabendo depois ao médico a decisão sobre que medidas a adotar.
Por fim, temos a fase final, onde se decide sobre o que fazer aos doentes que se encontram na urgência. Felizmente, a maioria tem alta e regressa ao domicílio, mas cerca de 5 a 10% dos presentes necessita de ficar internado. E temos outro problema para resolver. Em teoria, os internamentos na urgência deveriam ser temporários, dedicados ou a quem a probabilidade de ter alta nas próximas horas é elevada, ou a quem necessita de maior investigação clínica antes de ser transferido. Na realidade, por carência de vagas e meios nos serviços de enfermaria, os internamentos na urgência transformam-se em unidades de média e longa duração. É preciso desbloquear e agilizar o que se passa pós serviço de urgência, seja através do aumento da aposta na hospitalização domiciliária, maior utilização do hospital de dia, ou correto encaminhamento dos internamentos sociais. O Barómetro dos Internamentos Sociais referente a 2022, classificou como inapropriado 6,3% dos internamentos, enquanto a prevalência de internamentos por motivos sociais ascendeu a 11% do número total de internamentos, e 19% do número total de dias de internamento. Há causas estruturais profundas que condicionam estes resultados, é preciso trabalhar em conjunto com as autarquias e setor social para conseguir dar resposta a este profundo e complexo problema.
Não há soluções fáceis, nem a expectativa de uma resolução do problema das urgências a curto prazo. Mas é possível iniciarmos o caminho, abordando os problemas nestas três dimensões. Se formos metódicos e sistemáticos, a médio prazo poderemos ter serviços de urgência que sejam um recurso para situações verdadeiramente emergentes, e não a rede de salvaguarda de todo o sistema.
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