O tio António assumiu-se como bêbado. Fomos todos apanhados tão de surpresa que até brindámos a isso. Diz-se por aí que o tempo a que o conhecem é proporcional à certeza do seu alcoolismo crónico. Em pequeno, quem o viu a brincar com o biberão não teve dúvidas. Saiu do armário aos 52 anos, não por se assumir, mas por tê-lo atravessado de um lado ao outro fruto da sua ebriedade.
O tio António bebia tanto que uma simples conversa era o suficiente para acordarmos de ressaca. O seu bafo tinha propriedades desinfectantes, ao mesmo tempo que tinha sido responsável pela minha tia ficar sem carta, apenas por partilharem o quarto. Apesar de todos os problemas do meu tio António, é inegável que sempre foi uma pessoa de princípios e adepto da verdade. Quando uma vez foi mandado parar numa operação STOP e questionado se teria ingerido bebidas alcoólicas, respondeu:
- "Ingeri, ingeri. Foram 5 gins, 15 minis, 1 garrafa de vinho ao jantar, um Beirão e um café com CRF."
Ao que o polícia terá dito:
- "Acompanhe-me. Vai ter de soprar ao balão." - deixando o meu tio desolado pelo facto do agente não ter acreditado na sua palavra.
Ainda mostrou o talão, tentando comprovar que tinha mesmo bebido tudo aquilo que afirmou, no exacto momento em que lhe deram o alcoolímetro para a mão:
- "Obrigado, senhor agente. A próxima rodada pago eu." - fazendo o gesto de quem tenta beber de penálti o alcoolímetro.
Foi detido, talvez para lhe destilarem o sangue e lhe engarrafarem a alma.
A primeira vez que lhe notei uma alteração da personalidade foi quando, equilibrado pelos móveis e paredes da habitação, trouxe para casa uma periquita albina. "Salvei-a das superstições africanas" - disse, sabendo eu, de antemão, que a teria adquirido em Cacilhas, enquanto aguardava para atravessar para a outra margem. Disse à minha avó para tratar dela na sua ausência. Alimentava-a com torrão de Alicante e com Nougat, colocado num pires da Vista Alegre. Ao fim de semana dava-lhe peixe directamente pescado na lota e colocava-o num prato da Spal. A água era servida numa chávena de café da Costa Verde e ainda tinha uma terrina Bordallo Pinheiro, tal e qual uma piscina, para deleite da ave. Baptizou o animal de Passarette, criou-lhe uma conta de Instagram e começou a fotografá-lo. De manhã, tirava fotos tremidas pela privação do álcool, à noite pouco nítidas pela embriaguez. Certo é que a Passarette se tornou num dos grandes amores da sua vida chegando, até, a narrar os episódios da periquita num diário que andava perdido (como ele) lá por casa. E toda a família ridicularizava, entre dentes, o assunto. Mas era "o tio António" e desculpavam-no pela doença.
Acordava e assobiava-lhe a "The Story", da Brandi Carlile, que lhe recordava o anúncio da Super Bock. Abria o jornal e colocava as notícias em dia. Fazia isto há anos, mas esta semana foi diferente. Ao folhear o jornal, apercebeu-se de que o icónico estilista da Chanel, Karl Lagerfeld, tinha falecido. Entre os possíveis herdeiros de uma fortuna avaliada em cerca de 200 milhões de euros, estava a sua gata. E foi aqui que a história lhe soou familiar.
A herdeira chama-se Choupette e é uma gata birmanesa branca. A do meu tio chama-se Passarette e é uma periquita albina. A gata come em pratos de porcelana chinesa e a periquita usa pires da Vista Alegre, pratos da Spal, chávenas da Costa Verde e banha-se numa terrina Bordallo Pinheiro. A gata tem duas assistentes pessoais e um motorista e a periquita tem a minha avó, o meu tio e pode não ter motorista, mas tem sempre Nougat e torrões de Alicante. Ambas têm uma conta de Instagram, com a diferença de que a gata tem 130 mil seguidores e a periquita tem 300 mil credores a quem o meu tio António pediu fiado para, entre outras coisas, trazer peixe directamente da lota. A gata tem um livro, mas a periquita tem um diário e um anúncio de cerveja assobiado todas as manhãs. A gata tem uma fortuna pessoal avaliada em três milhões de euros e a periquita tem uma fortuna avaliada em meio torrão com melaço, uma sandes de torresmos e três tiras da barriga.
Enquanto nos mantemos socialmente com uma vitalidade questionável, há uma gata e uma periquita que podem herdar muito dinheiro e alguma comida. Mas, claro, o meu tio António é que é o bêbado.
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