Até Abril de 1974, duramente cinco décadas, o nosso país viveu sob um regime ditatorial, onde não existiam quaisquer direitos de reunião, associação ou de expressão de opiniões diferentes.
Os mecanismos de repressão atingiram níveis de violência duríssima com todos os que ousavam divergir, mesmo que só ao nível de meras opiniões pessoais.
A polícia política, a tenebrosa PIDE, estava omnipresente em todos os espaços da sociedade.
Vivíamos numa sociedade atrasada, muito pobre, com a fome presente à mesa da maioria das famílias portuguesas.
Quando se deu o 25 de Abril de 1974, cerca de metade da população portuguesa era analfabeta.
Havia múltiplas lutas de setores profissionais contra a miséria, por melhores condições laborais e salariais e pela aspiração à liberdade e à democracia que eram duramente reprimidas, com os trabalhadores considerados mais ativos a serem enviados para as prisões políticas, onde se destacava o Tarrafal, também chamado o “ campo da morte lenta”.
A partir de 1961, somou-se a devastadora guerra colonial, que matou e estropiou largos milhares de jovens.
Os poucos sindicatos existentes, os chamados “sindicatos corporativos”, não tinham, claro, eleições e os seus dirigentes eram nomeados pelo regime ditatorial e a polícia política.
Em meados da década de 1950, surgiu um amplo movimento de contestação dos médicos portugueses que surpreendeu a ditadura e a abanou de cima abaixo.
Apesar da forte repressão e de todas as proibições, começaram a suceder-se reuniões em vários pontos do país, umas maiores, outras menores, mas todas alinhadas com a exigência nuclear de que a situação existente não era mais suportável e que se deviam construir, sem demoras, alternativas para o estado de calamidade dos cuidados de saúde prestados aos cidadãos.
A Saúde era, então, uma subsecretaria de estado do Ministério do Interior.
Os estabelecimentos públicos de saúde estavam, no essencial, restringidos às 3 áreas urbanas de Lisboa, Porto e Coimbra.
Os nossos cidadãos só ficavam isentos do pagamento integral dos cuidados de saúde recebidos, se apresentassem um atestado de indigência emitido pela respetiva junta de freguesia.
Aproveitando a existência da Ordem dos Médicos, como única organização médica autorizada a existir, os médicos portugueses fizeram dela a cobertura legal para desenvolverem as suas justas reivindicações.
Estas importantes movimentações, dinamizadas pelo chamado “ Movimento dos Novos”, dado que agrupava os médicos mais jovens, foram cimentando uma sólida aliança entre as várias gerações médicas e inserindo na sua dinâmica o então bastonário Prof Jorge Horta ou o Prof Miller Guerra.
Estes médicos afrontaram a ditadura e não recuaram perante as ameaças da polícia política ou as prisões e torturas que começaram a ser utilizadas para os amedrontar e afastar da intervenção reivindicativa.
Embora se vivesse uma situação política de exceção, todos as decisões eram rigorosas quanto aos métodos democráticos de funcionamento e todos os documentos resultavam de discussões transparentes e amplamente participadas.
Em 1961, foi publicado o “Relatório sobre as carreiras médicas em Portugal” que teve um enorme impacto nos serviços de saúde e nos meios políticos, começando, desde logo, por impor a criação, pela primeira vez, do Ministério da Saúde.
A designação desse relatório não teve nada a ver com questões corporativas, mas com as imposições paranoides de uma ditadura cada vez mais enredada em contradições crescentemente agudizadas.
O regime ditatorial proibia a discussão de assuntos de política com impacto na governação, permitido somente a discussão de assuntos corporativos.
Nesse sentido, os autores do relatório adotaram a forma habilidosa de contornar essas proibições para assegurarem a publicação do documento, referindo, assim, as carreiras médicas.
Quem proceder à leitura desse relatório poderá verificar que o seu objetivo nuclear era a construção de um sistema de saúde inspirado no Serviço Nacional de Saúde inglês, na altura com um elevado prestígio internacional e apontado como um sinal claro de desenvolvimento civilizacional.
O Relatório afirma numa das suas páginas que: “ Tudo deverá convergir para a realização desta finalidade suprema: O Serviço de Saúde deve garantir a qualquer indivíduo, no momento necessário, os cuidados médicos de que precisa, isto é, todos os portugueses, qualquer que seja o seu nível económico ou social, têm o mesmo direito ao mesmo nível de tratamento, à fruição das mais modernas e eficientes técnicas, aos mais complexos e dispendiosos métodos de diagnóstico e terapêutica”.
Esta definição global foi a antecipação da consagração constitucional do direito à saúde.
O texto do relatório fez uma detalhada caracterização da sociedade, do atraso do país e das injustiças sociais, denunciando o número crescente de mortes por falta de assistência médica.
Em tempos de ditadura era imprescindível uma enorme coragem e uma firmeza de princípios e valores na defesa abrangente da dignidade da profissão para conseguir levar por diante uma movimentação reivindicativa desta enorme dimensão.
O facto de esta luta dos médicos ter obtido um crescente apoio nos vários meios sociais à medida que eram divulgados os seus objetivos por mecanismos alternativos para contornar a rígida censura da ditadura, impediu qualquer tentação do seu aparelho repressivo para limitar ou impedir o funcionamento da Ordem dos Médicos.
Desde essa altura, todas as grandes movimentações reivindicativas dos médicos não se restringiram aos aspetos socioeconómicos da profissão, mas incluíram também exigências relativas à organização e funcionamento dos serviços de saúde, sempre na perspetiva de os tornar mais funcionais, equitativos e com níveis crescentes de qualidade assistencial e de desenvolvimento técnico-científico ao serviço dos cidadãos.
Toda a legislação sobre saúde que foi publicada de 1961 até 1974 surgiu como resposta às pressões continuadas do movimento médico, que ia consolidando posições e ampliando o seu espaço de intervenção, como foi o caso da vitória, em 1971, de uma lista candidata à Secção Regional do Sul da Ordem dos Médicos, constituída por grande parte dos dinamizadores do citado relatório.
Logo após o 25 de Abril de 1974, foram os cursos de jovens médicos que tomaram a iniciativa junto do novo poder democrático de propor a criação do “Serviço Médico à Periferia”, levando os cuidados de saúde às populações situadas nas zonas mais recônditas do país que, nessa altura, viram pela primeira vez um médico à sua frente.
Os médicos portugueses tomaram sempre a iniciativa de apresentar propostas fundamentadas de melhoria contínua da prestação dos cuidados de saúde a todos os cidadãos, sem quaisquer distinções, e nunca descuraram o forte pendor humanista da sua profissão.
Não há, felizmente, nenhuma classe profissional homogénea e no caso da nossa classe médica as características amplamente dominantes foram essas.
Desde o início das movimentações médicas, há décadas atrás, que existia a clara consciência de que a Saúde era um fator indiscutível de progresso social e civilizacional.
Os factos, ao longo do tempo, têm mostrado que assim é, evidenciando que as soluções dos problemas da saúde foram impondo que outras áreas dessem também o seu contributo para a construção de uma sociedade mais justa e mais humanizada.
Quando em 2001, o relatório mundial da OMS (Organização Mundial da Saúde) sobre os sistemas de saúde, colocou o nosso país em 12º lugar a nível do seu desempenho global, foi o reconhecimento prático pelas mais altas instâncias internacionais dos resultados inquestionáveis do nosso SNS.
Mesmo com recursos escassos e vítima de um crónico subfinanciamento, o nosso SNS apresentava então um conjunto de indicadores que o colocava à frente da grande maioria dos países mais industrializados.
Naturalmente que a construção de uma obra deste alcance humano e civilizacional resultou também da contribuição de outros setores de profissionais de saúde, num esforço conjunto, articulado e de complementaridade entre as várias competências técnico-científicas.
De todos os processos de intervenção resultam sempre ensinamentos para o futuro, que se não os incorporarmos na nossa prática quotidiana corremos o risco mais que provável de um rotundo fracasso nas nossas movimentações profissionais.
Os médicos, hoje, estão confrontados com desafios decisivos para o futuro da sua própria profissão.
É hora de agir!
O movimento reivindicativo médico não pode permitir que o atirem para um “beco sem saída”, onde já entrou.
Em 40 anos de intervenção reivindicativa e negocial com a tutela governamental, os últimos 2 anos são os únicos onde não foram conseguidos ganhos concretos na reformulação da carreira médica e no reforço da atividade da profissão.
O aventureirismo, o enfeudamento a aparelhos partidários, o radicalismo pseudonegocial, a ausência de qualquer pensamento estratégico na elaboração das propostas apresentadas, o divisionismo entre as organizações sindicais médicas imposto por agendas de interesses alheios aos médicos e o próprio secretismo das propostas em discussão, traduziu-se num fracasso de consequências ainda não totalmente percetíveis.
É inadiável uma nova configuração da nossa ação reivindicativa, desde logo com uma dinâmica de unidade e de articulação negocial, bem como na elaboração de um programa de luta com objetivos concretos, com etapas negociais bem definidas e com um horizonte estratégico que não se limite, como tem acontecido, aos aspetos puramente economicistas, deixando o campo aberto às ações predadoras das nossas competências profissionais e técnico-científicas.
Mostremos em democracia que somos os dignos herdeiros dos que em ditadura não hesitaram em defender a nossa profissão e o direito humano à saúde para todos os cidadãos.
A profissão médica e a sua nobre missão humanista, é nossa, não é de mais ninguém! Coloquemo-la no seu devido lugar.
Os médicos como fator do avanço civilizacional do nosso país
Mário Jorge Neves, médico
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