“Onde morre a vergonha nascem os expedientes desonrosos.”
Camilo Castelo Branco
Continuando as reflexões sobre a temática do tabaco e dos players (como agora se usa dizer) em campo, é curioso verificar que a sua abordagem, passa por esfumar o objetivo da legislação – proteger a saúde da nação por via da diminuição efetiva do consumo de tabaco – e, por outro lado, manter atrás duma cortina de fumo os putativos perdedores da política em causa: a indústria tabaqueira. Basta ver os títulos dos jornais (“Governo ataca fumadores”, etc.) e constatar a quase exclusiva publicitação dos testemunhos e opiniões dos críticos da proposta de lei, em contraste com a ausência de contraditório (com exceção de elementos do governo), para concluir há um viés tremendo na discussão pública. Será que ninguém tentou contactar a OM, as sociedades médicas ou, pelo menos, um pneumologista ou um oncologista? Esta ausência torna-se mais notada se tivermos em conta que os assuntos sobre saúde são motivo de enfoque pela comunicação social e a presença de médicos é frequente, nomeadamente na televisão. Espantosamente, parece que não temos uma palavra a dizer, como se o tabaco, num ápice deixasse de ter a ver com saúde.
Em relação à Big Tabacco, é preciso reconhecer que o objetivo deste setor económico não é de modo algum atentar contra a saúde dos consumidores e só não inventaram um tabaco inofensivo porque tal é impossível. Como tal, o propósito do negócio é, se não aumentar os lucros, pelo menos evitar que decresçam, mesmo que à custa de colossais danos para saúde dos consumidores. Os argumentos negacionistas, de tão insustentáveis, já não convencem ninguém e tornaram-se mesmo contraprocedentes. Por isso, a estratégia saída dos gabinetes de relações públicas das tabaqueiras estabeleceu um guião atualizado: 1) passar como em vinha vindimada pelo tema saúde (não vá alguém se aperceber do elefante na sala!); 2) hipertrofiar e distorcer farisaicamente o argumento liberdade e direitos; 3) inventar ganhos fiscais e 4) manter na sombra as Tabaqueiras. A talho de foice registe-se o assombroso “esquecimento” a que é votada a gigantesca pegada ecológica infligida pela Big Tabacco.
Mas regressemos à ausência do parecer médico na comunicação social. Que os meios de comunicação social não os tenham abordado é deplorável, mas nada desculpa o silêncio a que Ordem e Sociedades Médicas se remeteram. O que está em causa são medidas legislativas destinadas a proteger a saúde, que é o amago da nossa profissão. Porquê então este mutismo tão desadequado? Acredito que já tenha passado tempo suficiente sobre anteriores posições da OM sobre o tabaco que, por pudor, melhor será manter escondidas sob um manto de sedimentos que o tempo vá caridosamente espessando. Contudo, o mutismo atual vem na esteira desse passado pouco respeitável.
Para tentar explicar este alheamento desprestigiante talvez se possam alvitrar submissão ou acanhamento perante o establishment dos opinion makers urdidores do suposto senso comum, que, neste tema, ditam a “tolerância para com os fumadores”. Assim sendo, seria de bom tom e avisado deixar claro que a OM renuncia, obediente, ao “fundamentalista antitabaco”. O silêncio da classe médica significa abdicar do mais elementar sentido crítico aceitando tal rolha e submeter-se à autocensura. Demite-se a classe das suas obrigações cívicas e recusa-se a intervir num domínio que é o seu por direito e obrigação.
Já agora, onde param a Liga Portuguesa Contra o Cancro? A Liga, que faz um magnifico trabalho no acompanhamento dos doentes oncológicos e no rastreio do cancro da mama, quando se trata dos cancros causados pelo tabaco, opta pelo low profile. Deprimente!
Termino com uma derradeira perplexidade: onde param os ambientalistas? Vastas áreas desflorestadas para dar lugar a plantações gulosas de água, biliões de beatas a caminho do oceano-esgoto parecem não os incomodar.
Acácio Gouveia
aamgouveia55@gmail.com
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