Na atualidade, quando falamos de descentralização da saúde o primeiro vislumbre está associado em muito à necessidade de reestruturação e de sustentabilidade dos cuidados primários, reforçando as políticas de saúde ao nível local, tendo por base os determinantes de saúde e determinantes sociais da população. Assim, a reforma dos CSP tem sido considerada essencial para a qualificação e sustentabilidade do SNS. Considerando que este facto contribui para a renovação do interesse de parte importante da população portuguesa pelo SNS, que como temos constatado tem vindo a afastar-se dos centros de saúde. Neste sentido, a descentralização da gestão do SNS nos ACeS assume o objetivo de aumentar a capacidade de tomar decisões no nível local, permitindo um nível adequado de autonomia funcional, administrativa e financeira.
No âmbito das tentativas de descentralização da organização e gestão, na continuidade da reforma dos cuidados de saúde primários, e já depois da criação dos 68 ACeS e da sua reorganização em 55 agrupamentos, surgiu a questão da “municipalização” da saúde.
A 12 fevereiro de 2015 foi publicado o Decreto-lei no 30/2015, que estabeleceu o regime jurídico da delegação de competências nos municípios e entidades intermunicipais no domínio de funções sociais e de saúde. No seu preâmbulo pode ler-se que pretende cumprir o desígnio da descentralização constante na Constituição, assim “representa um processo evolutivo da organização do Estado, visando o aumento da eficiência e eficácia da gestão dos recursos e prestação de serviços públicos pelas entidades locais (…).”
A questão que se impõem: “Na atual estrutura, estão os Municípios, no geral, preparados para operar a Mudança Necessária no âmbito da Municipalização da Saúde?” Poderá ajudar a elaborar uma resposta se conhecermos quais são os objetivos definidos para a Municipalização da saúde: Definição da estratégia municipal de saúde, enquadrada no Plano Nacional de Saúde; Gestão de espaços e definição de períodos de funcionamento e cobertura assistencial; Execução de intervenções de apoio domiciliário, social a dependentes; Celebração de acordos com instituições particulares de solidariedade social; Gestão de transportes dos utentes e serviços ao domicílio; Administração das unidades de cuidados na comunidade; Recrutamento, alocação, gestão e formação de recursos humanos e avaliação do desempenho dos técnicos superiores, técnicos superiores de saúde, técnicos de diagnóstico e terapêutica, assistentes técnicos e assistentes operacionais; Elaboração de protocolos de apoio financeiro; Gestão de equipamentos e infraestruturas dos centros de saúde; Gestão das infraestruturas dos ACeS (construção, manutenção de edifícios e equipamentos, arranjos exteriores, jardinagem e serviços de limpeza, segurança e vigilância); Gestão dos bens móveis entre as unidades funcionais do ACeS.
Vários atores sociais manifestaram-se contra esta proposta de “municipalização” da saúde, com os argumentos de que a proposta era demasiado generalista, sem enquadrar a descentralização na reforma do Estado e sem definir os objetivos concretos do seu âmbito de ação. Assim como, que existia uma abordagem genérica das vantagens de um sistema descentralizado sem apresentar resultados de estudos com fundamentação e evidência de boa governança.
Deste modo, torna-se dificil compreender a iniciativa legal de descentralizar tantos aspetos dos cuidados primários para os municípios, quando a concentração dos ACeS e a sua passagem, em 2012, de 68 a 55, aumentou o número de concelhos abragidos por cada ACeS, em que alguns incluem mais de dez municípios. Como os ACeS dependem diretamente das ARS, logo sem a autonomia na gestão, torna-se muito complexo aplicar a estipulação legal.
De referir ainda que os municípios assumem este papel já previsto na lei, nomeadamente nos conselhos da comunidade dos ACeS, podendo intervir ao nível das infraestruturas, através de protocolos e parcerias, facto que se tem verificado em todas as regiões de saúde.
Podemos denotar que o cumprimento do decreto-lei no 30/2015 criaria desorganização e confusão na gestão entre as estruturas centrais e locais, assumindo-se como mais uma estrutura intermédia e aumento das desigualdades em termos de acesso, recursos humanos e unidades funcionais, uma vez que uns estariam dependentes do ACeS/ARS e outros dos municípios. Por último acrescento o facto de alguns ACeS estarem integrados em ULS, com o estatuto legal e estrutural de entidades públicas empresariais.
Existe a necessidade de investir na investigação centrada em definições discretas de descentralização, na forma como os fatores e mecanismos institucionais afetam o desempenho do sistema de saúde e os resultados no contexto geral das estruturas de governação descentralizadas. Considerando que na atualidade os profissionais envolvidos no processo de mudança sentem a necessidade de aumentar os seus conhecimentos neste âmbito. Esta é uma temática de grande relevo exigindo respostas coesas, organizadas e justificadas na elaboração de políticas de saúde ajustadas à realidade distinta de cada unidade de prestação de cuidados de saúde.
As dificuldades existentes ao nível da descentralização nos ACeS e os factores que contribuem para essas dificuldades, são também eles confirmados pela literatura existente neste âmbito, sendo um ponto de elevada importância para a continuidade e importância de se desenvolverem estudos que permitam a boa governance na descentralização e municipalização da saúde.
É muito importante identificar os objetivos de descentralizar cada uma das funções e considerar com rigor e evidência científica quais as funções com maior ganho em ser desempenhadas no nível central e no nível local, assumindo na sua base as competências e recursos existentes em cada um destes níveis. Na aplicação dos questionários ficou também latente em algumas respostas a importância atribuída ao mapeamento da estrutura administrativa existente, da estrutura financeira, operando a identificação e mensuração dos potenciais focos de conflitos e problemas (que podem continuamente estar a gerar e ineficiência do sistema).
Em suma, em jeito de proposta, para avançarmos com a descentralização e municipalização da saúde é importante operar no terreno estudos de custo-eficiência, ouvir os vários parceiros sociais e de saúde, envolver os cidadãos, os profissionais de saúde, académicos e os políticos no desenho de projeto – piloto que permitam criar evidência científica e, por seu turno, aplicar essa evidência para aplicar nos processos de melhoria e qualidade de cuidados prestados às populações.
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