Para a maioria das pessoas, os episódios maníacos são uma manifestação de perturbação bipolar, uma doença psiquiátrica que tipicamente não está associada a lesões do cérebro. No entanto, a mania pode também surgir após uma lesão cerebral, em pessoas sem manifestação prévia de perturbação bipolar.

A identificação dos circuitos cerebrais afetados nestes casos de mania “lesional”, para além de contribuir para a compreensão dos mecanismos subjacentes, poderá também ajudar a desenvolver tratamentos mais eficazes para a perturbação bipolar. Uma equipa de cientistas de Portugal e dos Estados Unidos acaba de anunciar um importante avanço nesta matéria. 

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As pessoas que sofrem de perturbação bipolar apresentam períodos de depressão que alternam com episódios de mania, durante os quais, entre outras manifestações, se tornam eufóricos, irritáveis, dormem menos e falam de uma forma excitada e acelerada, saltando rapidamente de uma ideia para a seguinte. Mas o que é menos conhecido é que a mania não está unicamente associada à perturbação bipolar, mas pode também resultar de lesões cerebrais causadas, por exemplo, por um traumatismo craniano ou um AVC. A raiz biológica do surgimento desta “mania secundária” após uma lesão cerebral (assim chamada por contraste com a mania dita “primária” na perturbação bipolar), tem sido difícil de identificar.

Contudo, as lesões que conduzem à mania parecem ter algo em comum: situam-se habitualmente no hemisfério direito do cérebro, por vezes qualificado de cérebro “emocional” e cuja disfunção tem sido associada a várias perturbações emocionais. O predomínio de lesões do lado direito do cérebro foi confirmado num estudo sistemático publicado no início do ano, realizado por cientistas da Unidade de Neuropsiquiatria do Centro Champalimaud, liderada por Albino Oliveira-Maia.

Esse estudo permitiu também confirmar que estas lesões atingem uma grande diversidade de áreas nesse hemisfério. Este resultado sugere a possibilidade de, para além de ocorrerem de um lado específico do cérebro, as lesões conducentes a episódios de mania poderem ter como denominador comum o envolvimento de determinados circuitos cerebrais.

No seu mais recente trabalho, publicado esta semana na revista Journal of Clinical Investigation, os cientistas da Unidade de Neuropsiquiatria, numa colaboração internacional com colegas da Escola de Medicina da Universidade de Harvard, utilizaram um novo método de neuroimagem, denominado Lesion Network Analysis (análise de redes lesionais) para construir um mapa de conectividade das lesões cerebrais associadas à mania. Com esta abordagem, os autores confirmaram que, apesar de não existir uma mesma área cerebral lesionada em todos os casos de mania secundária, a maioria das lesões ocorre em locais de cérebro com ligações a um grupo específico de regiões do córtex cerebral que regulam o humor e as emoções.

Mania
Mania créditos: Diogo Matias/Centro Champalimaud

"As localizações das lesões associadas à mania foram identificadas através de uma pesquisa sistemática das publicações científicas sobre o tema e mapeadas sobre um atlas do cérebro”, escrevem os autores no seu artigo. “O mapa das regiões funcionalmente conectadas a cada local lesionado foi computado [utilizando imagens de ressonância magnética funcional provenientes de 1000 sujeitos] e comparado com os mapas obtidos a partir dos locais de lesões não associadas à mania [com base num grupo de 79 doentes].

“Descobrimos que as localizações das lesões associadas à ocorrência de episódios de mania se caracterizam por uma forte conectividade com três áreas do córtex cerebral do lado direito: o córtex orbitofrontal, o córtex temporal inferior e o pólo frontal”, sintetiza o primeiro autor do estudo, Gonçalo Cotovio, interno de Psiquiatria a fazer o doutoramento sob supervisão de Oliveira-Maia, um dos investigadores principais do estudo. Estas regiões têm sido descritas, entre outras, como fazendo parte do circuito límbico, uma rede neuronal que tem sido sistematicamente associada à regulação do humor e ao processamento das emoções. Cotovio acrescenta ainda que “este padrão específico de conectividade funcional mostrou ser semelhante em grupos independentes de doentes com mania lesional e distinta dos padrões observados em outras síndromes neuropsiquiátricas causadas por lesões cerebrais”.

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"Embora ainda não saibamos se as mesmas redes cerebrais estão disfuncionais na mania primária [característica da perturbação bipolar], o estudo da mania lesional poderá ser uma abordagem útil para esclarecer a neuroanatomia da mania primária na perturbação bipolar, uma vez que poderá revelar o envolvimento de regiões e redes neuronais que não foram identificadas em estudos anteriores", salienta Oliveira-Maia.

"Este trabalho poderá assim contribuir para o desenvolvimento de ferramentas de diagnóstico clinicamente relevantes, e para a identificação de potenciais alvos terapêuticos no córtex cerebral que permitam recorrer a técnicas de estimulação cerebral, tais como a ‘Estimulação Magnética Transcraniana repetitiva’ (rTMS na sigla em inglês), para o tratamento da perturbação bipolar, entre outras perturbações neuropsiquiátricas", diz.

A rTMS é uma técnica não-invasiva e indolor, utilizada sobretudo na depressão resistente ao tratamento, mas estando também indicada no tratamento de outras perturbações neuropsiquiátricas. Nos tratamentos com rTMS, uma bobine eletromagnética é aplicada num local preciso da superfície da cabeça do doente, para transmitir pulsos eletromagnéticos, capazes de modificar a atividade neuronal no alvo cerebral. Várias empresas produzem este tipo de equipamento com aprovação para uso terapêutico nos Estados Unidos. Em Portugal, o Centro Clínico Champalimaud realiza tratamentos de rTMS desde 2017.

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"A rTMS de alta frequência aplicada ao córtex pré-frontal dorsolateral à direita poderá ser benéfica no tratamento da mania, sendo que alguns alvos terapêuticos nesta área parecem ser mais eficazes do que outros", explica Cotovio. "Os nossos resultados podem vir a ser utilizados para orientar novos ensaios de estimulação cerebral para tratamento de mania, uma vez que sugerimos um alvo ideal no córtex pré-frontal direito, bem como outros locais potencialmente úteis no córtex orbitofrontal direito e no córtex temporal inferior direito. Naturalmente que os locais de estimulação sugeridos necessitam de ser validados clinicamente em estudos prospetivos".

Por último, dado que a mania pode também surgir como uma complicação, embora rara, da Estimulação Cerebral Profunda (em inglês DBS) — outro tratamento de neuromodulação utilizado em perturbações neuropsiquiátricas —, os autores quiseram saber se o seu mapa de conectividade das lesões associadas a episódios maníacos poderia ajudar a explicar o risco de mania associada à DBS, em função do local escolhido para estimulação.

"Os nossos resultados sugerem que os mesmos circuitos cerebrais são perturbados pelas lesões cerebrais e pela estimulação por DBS associada à mania", diz Cotovio. Oliveira-Maia conclui: "caso tal se confirme em estudos futuros, a nossa abordagem poderá vir a ser útil para melhorar o planeamento dos tratamentos com DBS de forma a evitar estes efeitos secundários incapacitantes".