A integração da Inteligência Artificial (IA) na saúde é um dos maiores avanços tecnológicos do século XXI. No entanto, esta revolução digital tem implicações que ultrapassam largamente o plano clínico. A sua crescente presença em diagnósticos, decisões terapêuticas, gestão hospitalar e investigação biomédica levanta questões estruturais de soberania, segurança e equidade, tornando-se um tema incontornável da geopolítica contemporânea. Em Portugal, onde o Serviço Nacional de Saúde (SNS) enfrenta pressões crescentes, a forma como o país se posiciona face a esta transformação terá consequências determinantes.
O acesso a tecnologias de IA na saúde é profundamente desigual a nível global. Países com forte capacidade de desenvolvimento tecnológico controlam os fluxos de dados, detêm infraestruturas computacionais avançadas e lideram a produção de algoritmos clínicos. Estas assimetrias criam uma nova forma de dependência digital, na qual os países periféricos, incluindo Portugal, correm o risco de se tornar meros consumidores de soluções desenvolvidas externamente, muitas vezes sem garantias de transparência, soberania de dados ou alinhamento com os valores do seu sistema de saúde.
A maioria dos sistemas de IA em saúde são treinados com dados de populações que não refletem a diversidade genética, epidemiológica e sociocultural da população portuguesa. A importação de algoritmos clínicos treinados com dados de outras populações pode gerar diagnósticos imprecisos, reforçar enviesamentos sistémicos e fragilizar a qualidade assistencial. A sua aplicação sem validação local pode gerar erros clínicos, discriminação e ineficiências operacionais. A soberania tecnológica, neste contexto, não é uma questão abstrata, é uma condição necessária para garantir cuidados de saúde justos, seguros e adaptados à realidade nacional.
Além disso, a concentração da propriedade intelectual em torno de algoritmos de diagnóstico e gestão clínica em grandes empresas tecnológicas transnacionais, a maioria sediada fora da Europa, confere a esses atores um poder crescente sobre decisões sensíveis que deveriam ser do foro público. A entrada de plataformas privadas no SNS, através de contratos de fornecimento de soluções baseadas em IA, exige uma reflexão profunda sobre a segurança digital, a proteção de dados sensíveis e os limites éticos da delegação algorítmica em contextos de vulnerabilidade clínica.
Portugal enfrenta ainda o desafio de formar quadros altamente qualificados em IA aplicada à saúde, capazes de avaliar criticamente as ferramentas tecnológicas disponíveis e participar ativamente na sua conceção e adaptação. A dependência de soluções externas sem capacitação interna, agrava o desequilíbrio estratégico e limita a autonomia nacional na definição de políticas de saúde digital.
A nível europeu, iniciativas como o European Health Data Space e o AI Act oferecem oportunidades importantes para reforçar a colaboração entre Estados-membros, proteger os direitos dos cidadãos e promover uma IA ética e transparente. Portugal deve alinhar-se com estas estratégias, mas também afirmar uma voz própria, capaz de salvaguardar a sustentabilidade do SNS e os princípios fundamentais que o regem: universalidade, equidade e solidariedade.
A geopolítica da IA em saúde exige, portanto, uma abordagem multidisciplinar e coordenada, com políticas públicas informadas, investimento em investigação nacional, alianças internacionais estratégicas, envolvimento cívico, e a tão necessária capacitação profissional. Num mundo onde os algoritmos desenham diagnósticos e os dados definem políticas, a governação da IA em saúde tornou-se uma questão de segurança, de justiça e de soberania global. Não basta adotar tecnologia, é preciso garantir que o seu uso reforça a autonomia clínica e a soberania sanitária.
A IA na saúde exige, portanto, mais do que inovação tecnológica, exige uma visão política, regulação inteligente, diplomacia digital e investimento estruturado em investigação nacional. Trata-se de garantir que a transformação digital em curso não acentue desigualdades nem fragilize sistemas públicos, mas que seja orientada por um projeto coletivo de justiça em saúde.
Num tempo em que os algoritmos disputam o lugar dos clínicos e os dados se tornam armas estratégicas, Portugal deve escolher entre ser sujeito ativo da sua saúde digital ou tornar-se dependente de lógicas que podem escapar ao controlo democrático. Na era da IA, não basta estar conectado, é preciso estar consciente do mapa geopolítico que a tecnologia redesenha, invisível, mas profundamente real.
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