HealthNews (HN)- A dor afeta um em cada três portugueses. Quais as principais patologias responsáveis pela dor crónica?
Hugo Cordeiro (HC)- A dor de origem músculo-esquelética, em particular a lombalgia crónica e a dor a nível dos membros inferiores de etiologia degenerativa são de longe as principais causas de dor crónica em Portugal e no mundo ocidental. Em menor grau, patologia inflamatória articular, cefaleias, dor pós-traumática ou cirúrgica, dor relacionada com o cancro, fibromialgia e doenças neurodegenerativas, entre outras, contribuem igualmente para a carga de dor crónica a nível global.
HN- A dor não se vê, não é palpável e tampouco faz barulho… Todos estes fatores levam a uma perda da qualidade de vida dos doentes. Quais as principais barreiras que identifica no tratamento da dor?
HC- Existem múltiplas barreiras desde logo no diagnóstico da dor, por questões culturais, de estoicismo, assunção da dor como uma fatalidade do envelhecimento ou da sua condição de saúde e do sofrimento como inevitável e necessário, o que leva a um sub-reporte das queixas.
Existe igualmente uma grande dificuldade de adesão a medidas não farmacológicas e de estilos de vida mais saudáveis, em parte por condicionalismos económico-financeiros e disponibilidade de tempo e em parte por elevados níveis de iliteracia em saúde com a inerente dificuldade em associar medidas de estilo de vida a dor crónica. Também mitos que se perpetuam relacionados com os fármacos usados para o tratamento da dor como o medo da sua perda de eficácia e dos efeitos secundários o que contribui para baixa adesão terapêutica sustentada ao longo do tempo, contribuindo para a cronificação da dor e aumento da sua complexidade.
Da parte dos profissionais de saúde, aspeto que felizmente tem vindo a ser melhorado, a subvalorização das queixas dos doentes, o não reconhecimento da dor crónica como um problema de saúde pública e uma doença em si mesmo, pouco à vontade no manejo de todas as opções farmacológicas disponíveis para o tratamento da dor e falta de disponibilidade para (re)avaliações periódicas condicionam sobremaneira uma abordagem efetiva e continuada da dor crónica.
Por fim, mesmo a própria organização e complexidade dos serviços de saúde que se mantêm pouco articulados e multidisciplinares prejudica uma abordagem holística da dor em tempo útil.
HN- Quando se fala em “medir a dor” é preciso medir a sua intensidade, mas também perceber o impacto que tem na vida dos doentes. Considera que há humanidade no tratamento da dor?
HC- A humanização dos cuidados de saúde é uma temática felizmente cada vez mais valorizada por utentes e profissionais e o caminho será sem dúvida a valorização crescente de indicadores qualitativos e de satisfação dos utentes. Sem dúvida que pode ser melhorado o humanismo na abordagem à dor e este humanismo começa desde logo na capacidade de o profissional de saúde se colocar no lugar do outro, entender a dor como um fenómeno necessariamente subjetivo e condicionado por múltiplos fatores inerentes ao indivíduo e ao seu meio ambiente. A preocupação em ouvir o doente, despender-lhe tempo, valorizar as suas queixas, perceber o impacto funcional da dor no seu dia a dia e de que forma a presença de dor mal controlada poderá impactar no surgimento e tratamento de várias outras comorbilidades como ansiedade, depressão, privação de sono, etc. são fundamentais na humanização da abordagem à dor e contribuem de forma decisiva para a satisfação do doente e do próprio profissional.
HN- Segundo o estudo “Prevalência e Caraterização da Dor Crónica nos Cuidados de Saúde Primários”, 33,6% dos indivíduos em unidades de Cuidados de Saúde Primários em Portugal vivem com dor crónica. Qual a importância da relação médico-doente no tratamento da doença?
HC- A relação médico-doente é absolutamente fundamental na negociação, estabelecimento e cumprimento de qualquer plano terapêutico, tão mais importante quanto mais crónico e disfuncional o caráter do problema em causa. O estabelecimento de uma relação de empatia, confiança e cordialidade permite ao clínico melhorar a capacidade do doente autogerir e compreender a sua dor, assim diminuindo a carga e o consumo desnecessário de recursos, melhor gerir expetativas e resultados e melhor negociar e estabelecer planos terapêuticos personalizados e prolongados ao longo do tempo que terão necessariamente mais adesão. Por vezes, o simples facto de o doente ver no seu médico alguém que o compreende, ouve e se preocupa, permite diminuir níveis de ansiedade e com isso melhorar os resultados do tratamento.
HN- A dor foi declarada o quinto sinal vital. Apesar disso, em muitas ocasiões, a dor é negligenciada e subestimada. O que é necessário ser feito para conseguir com que a dor saia do silêncio?
HC- Há muito ainda a ser feito, do lado dos utentes, num trabalho transgeracional, que começa na escola, com mais e melhor educação para a saúde e com maior exigência dos próprios para com a sua qualidade de vida e para a qualidade dos serviços de saúde. A equiparação da dor a um sinal vital foi uma importante vitória dos doentes e profissionais, mas que por si só não chega. Dar voz a quem tem dor crónica, perceber as barreiras que obstam a um bom diagnóstico e tratamento, reforçar e implementar políticas de saúde, mas também políticas sociais e económicas com enfoque na proteção da saúde individual e coletiva, mais e melhor formação e investigação nacional na área da dor, uma contínua atualização e adaptação da prática clínica à melhor evidência disponível, uma melhor articulação entre os diferentes profissionais e instituições de saúde e o garante de condições de acessibilidade e tempo para que os profissionais possam ouvir os seus doentes, diagnosticá-los e tratá-los de forma satisfatória para todas as partes contribuiriam para que a dor de cada um fosse ouvida.
HN- Fundação Grünenthal promoveu debate “Viver com Dor” na terça-feira. Qual a importância deste tipo de iniciativas?
HC- Este tipo de iniciativas dá voz aos atores mais capacitados para falar da vivência da sua dor e dos entraves que sentem no seu dia a dia para um melhor tratamento da mesma.
Contribui para que muitos doentes com dor crónica percebam que a sua dor, a sua funcionalidade e qualidade de vida poderão ser melhoradas e permite, no fundo, através de relatos na primeira pessoa, que todos coletivamente, decisores e sociedade, doentes e profissionais, entendamos que é possível fazer diferente e melhor.
Entrevista de Vaishaly Camões
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