Vacinas e falsa ciência
A falsa ciência não aumenta o nosso saber, agrava a nossa ignorância.
Marquês de Maricá
Desengane-se quem acreditou que o aumento da literacia e a revolução das Luzes ocorrida nos séculos XVII e XVIII iria varrer paulatinamente o obscurantismo e o fanatismo da face da Terra. As várias ofensivas contra o conhecimento científico diversificam-se por vários cambiantes, bem diversos e mesmo divergentes nos métodos e fundamentos. Tomemos, como exemplo, o que nos é dado observar na lusa pátria, empenhada na campanha da vacinação anticovid.
Fanatismo truculento
O fanatismo é a única forma de força de vontade acessível aos fracos.
F. Nietzsche
Pela mão dum bando de histéricos, o insulto e o confronto físico foram os métodos escolhidos para dar livre curso ao proselitismo obscurantista. O azar do grupelho foi ter escolhido o vice-almirante Gouveia e Melo como alvo. Fosse alguém mais “político” e arriscávamo-nos assistir a uma lamentável cena de tentativa de “diálogo”, o que certamente descambaria numa vitória dos negacionistas. Não vale a pena perder muito tempo a adjetivar este magote de sucessores daqueles que, séculos atrás, chacinaram Hipásia, queimaram Giordano Bruno, Soler e judeus, que colocaram no índex a obra de Copérnico e condenaram Galileu ao silêncio. As reportagens não deixam dúvidas: o líder da Task Force foi grosseiramente injuriado e houve uma tentativa nítida de obstrução física à sua liberdade de ação. Façamos votos para que a justiça deixe uma mensagem clara aos mixordeiros: a mentira e a violência não compensam.
Desvalorizar o risco que se esconde por traz deste grupúsculo seria um erro: eles são apenas a ponta do iceberg. A vandalização do CVC da Azambuja é apenas mais um exemplo da capacidade de ação do “braço armado” do movimento antivacinas. Porém, há outros aliados, mais soft, nesta cruzada retrograda.
Glamorosa e mentirosa
Uma mentira é como uma semente daninha, é espontânea e sem lei, pode cair em qualquer terreno.
José Luís Peixoto
Joana Amaral Dias, opinion maker da TVI, presenteou-nos, semanas atrás, com um exemplo de ofensiva anticientífica, com objetivo de substituir a ciência por crenças.
À esbelta senhora concedamos a justiça, aliás pouco convincentemente, de admitir que se informou apenas nos sites antivacinas da net. O desfilar de dislates foi de tal modo recheado de mentiras, meias-verdades e inconsistências argumentativas, que só é desculpável na ausência de confirmação dos fundamentos que usou para justificar a sua relutância para com a atual campanha de vacinação. Ficou-se pela informação parcial, colhida seguramente nos tais sites manhosos, e escusou-se a consultar fontes que contradissessem a sua tese. As atenuantes do seu desvario quedam gravemente fragilizadas por estarmos perante alguém com formação científica: tinha obrigação de permanecer fiel à metodologia científica no porfiar da verdade.
A intervenção antivacinas da opinion maker é paradigmática: visual atrativo, assertividade, linguagem ciêntífica-like, firme tentativa de bloquear argumentação contrária, recurso a slogans que, repetidos à saciedade, transmutem a mentira numa verdade inquestionável.
Resumindo: Joana Amaral Dias é o protótipo de aspirante a figura de autoridade, proprietária da verdade, acima da razão e dos factos. Mais aceitável que os trauliteiros que tentaram ameaçar o vice-almirante, não é menos eficiente que estes na missão de erodir a causa da vacinação e da ciência em geral.
Poderosos e ardilosos
A ciência, ao contrário da pseudociência, assenta em provas e não em figuras de autoridade.
Carlos Fiolhais
Num registo diferente temos os agentes políticos. É deveras curioso – e inesperado – o que se passa no nosso país.
Por um lado, temos a extrema direita a pescar nas águas turvas do descontentamento gerado pelo confinamento e, quiçá, a espelhar o seu discurso ideológico no dos sponsers além-Atlântico. O argumento é do mais estafado que se possa imaginar: a liberdade individual e o inerente direito a não se vacinar. Pena é que o direito à saúde dos outros indivíduos seja esborrachado por este pretenso direito individual. Ora, é sabido que as ideologias autoritárias antipatizam com poder do conhecimento e com o livre pensamento que lhe é inerente, portanto, esta investida contra as vacinas tem como objetivo acessório o seu enfraquecimento do prestígio da ciência. Não deixa de ser cómico que o argumento evocado seja a liberdade por parte de ideologias que apelam à coerção e à limitação da liberdade!
Por outro lado, inopinadamente, emergiu nas últimas semanas a tentativa de interferência de alguns órgãos do poder na liberdade de decisão dos técnicos. Quer o Presidente da República, quer o chefe do Governo Regional da Madeira fizeram questão de mostrar “quem é que manda”. O primeiro pressionou, o segundo foi mais longe: ordenou. Singular é o facto de estarmos perante figuras democraticamente legitimadas. Quer dizer que a tentação de controle do conhecimento e do modus operandi científico extravasou os regimes autoritários: seguir as pisadas dum Putin, que decidiu “na secretaria” a validade da sua Sputnik, parece ser o desiderato de alguns políticos da área democrática.
Note-se também que este assalto à independência da ciência vem, não do lado dos adversários das vacinas, mas dos seus apoiantes. O que não terão entendido é que, ao tentarem ditar as normas, ao arrepio da ciência, estão a contribuir para o descrédito da vacinação e não para a sua promoção.
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