Embora um país seja grande, aqueles que amam a guerra certamente perecerão.”
Liu Xiang

Claude Malhuret, senador francês, comparou Trump ao imperador Nero, num poderoso discurso que se “tornou viral” (como agora se diz) nos media americanos. Nesta ordem de ideias, porque não equipará-lo a Calígula que, segundo Suetónio, teria planos para nomear cônsul o seu cavalo Encinato?

O abécula

Quando falares, cuida que tuas palavras sejam melhores que o silêncio
Provérbio indiano

RF Kennedy Junior foi empossado Secretário da Saúde da nova Administração Americana. O Júnior tem um curriculum, digamos … fora da caixa. Estamos perante um notório e assumido militante anti-vacinas (discípulo dileto de Walkfield – o grande guru da falsificação científica) e autor dum livro onde tenta arrasar o Dr. Fauci, mundialmente reconhecido como um dos melhores especialistas em Saúde Pública. O Júnior é também detentor de notável experiência – com profundo conhecimento de causa- no domínio da toxicodependência.

Em poucas semanas, notabilizou-se pela forma atordoada como gere o surto de sarampo, à revelia dos tratados de epidemiologia, patologia, microbiologia e farmacologia. Prescreve óleo de fígado de bacalhau, mais umas mixórdias à la carte e quanto a vacinas: só se os pais o entenderem. Resultados? O banha-da-cobra lá se encarrega de gerar uma “realidade alternativa”, tão imaginativa quanto descarada para justificar a incidência imprópria de país desenvolvido, as mortes e os internamentos.

Mas o homem também aparenta boas intenções: está preocupado com a má qualidade da alimentação dos concidadãos. Só que daquela molhada de neurónios atormentados por anos de consumo de estupefacientes dificilmente saem ideias de jeito. É que o cavalheiro está apreensivo com os aditivos (os tais “químicos” na nomenclatura um tanto cómica dos adeptos do “natural”). Por aditivos entende todos os aditivos! Num vídeo educativo, (?) lá foi soletrando (é mesmo verdade: soletrando e, às vezes, mal!) os exemplos de “químicos” supostamente deletérios para a saúde, não faltando a … rivoflavina!! Mas não ficamos por aqui: para complementar esta fictícia lição de nutrição, o Junior deixa-se filmar em amena cavaqueira sobre alimentação num restaurante de fast food a enaltecer as virtudes de Steak’n shakes, batatas fritas, gelados hipercalóricos e pantagruelices do género. Mas há mais: regurgitou daquela mente iluminada mais uma ideia bombástica, agora em relação à epidemia da gripe das aves em curso por terras do tio Trump: permitir que se espalhe livremente, na esperança de selecionar exemplares imunes à doença! Alguém explique ao homem que a gripe espanhola (que seguramente não era espanhola, mas muito provavelmente americana), em quase três anos matou mais gente que a 1ª grande guerra em quatro anos e meio.

Mas convenhamos que a falsificação científica dos MAGA (Make America Great Againe) até nem assim tão inovadora quanto isso. Há pouco menos de 90 anos, o lyssenquismo estalinista “libertava-se” dos constrangimentos da “ciência burguesa e sues erros mendelianos”, às quais contrapunha uma “biologia proletária”. Pelo caminho Trofym Lyssenko, a estrela ascendente da nova biologia, em sintonia ideológica com Stalin, empurrava Nikolai Vavilov (por acaso, internacionalmente reconhecido botânico e geneticista) para um qualquer gulag, onde veio a falecer, aos 56 anos, de fome. Fora acusado, em 1940, de desvio ideológico, espionagem, sabotagem e toda uma chusma de idiotices sinistras, comuns na época.

Tal como a URSS do estalinismo, os EUA dos MAGA aderiram às pseudociências. Mas há uma diferença. Ao longo da longa História da Rússia os regimes fortemente autocráticos têm-se entremeado com períodos caóticos, não permitindo, nem uns nem outros, a emancipação da sociedade civil, condição indispensável para a aparecimento de sociedades científicas e de ensino fortes e autónomas dos aparelhos ideológicos e dos governos. Nos EUA, até à tomada de posse de Trump, a tradição democrática de dois séculos e meio permitiu que se constituíssem organizações da sociedade civil particularmente robustas, nomeadamente no domínio do saber.

Por isso, os desvarios obscurantistas da atual administração terão, provavelmente, pela frente um osso duro de roer. O Júnior pode, portanto, contar com um consulado turbulento, se não renunciar aos dislates que povoam o seu atormentado intelecto. A quem se der ao trabalho de procurar nos arquivos da Fox News (cadeia televisão oficiosa do presidente Trump) uma peça sobre o surto de sarampo, encontrará um exemplo da independência e inconformidade dos profissionais de saúde face ao guião ideológico magista. Questionado o médico consultor do canal para assuntos de saúde sobre qual o lugar da vacina, enquanto “um dos meios” para lidar com a doença, a resposta foi clara: não há alternativas à vacinação (que é segura) em massa. Quer dizer, o bando de pantomineiros instalados no congénere do nosso ministério da saúde pode contar com oposição firme dos profissionais, nomeadamente da AMA, mesmo que sejam votantes republicanos.

Labregos @ Rufias

Conheço demasiado esses semelhantes a Deus; querem que se acredite neles, e que a dúvida seja pecado.” Nietzshe

Pela qualidade (ou notória falta de qualidade) do responsável pela saúde podemos aquilatar das aptidões do restante elenco desta disforme Administração. Parece saída dum bando do West Side Story, tal o ar de amadorismo dos escolhidos pelo Presidente. Com duas exceções. M. Rubio, um fundamentalista cristão, e JD Vance, um cristão fundamentalista. Este segundo é verdadeiramente satânico: num discurso em 2023, afirmou que era necessário atacar as universidades e classificou como inimigos os professores. Por outro lado, o pistoleiro do Ohio gosta de dar lições de europeísmo à Europa, enfatizando a tradição cristã. Porém, por desconhecimento ou má fé, ignora que, de outras tradições para além da judaico-cristã (por acaso de origem asiática), emergiu a Europa, por exemplo, a tradição helénica (essa sim, genuinamente europeia). Por sinal, estas duas fontes são muito dificilmente conciliáveis, que o digam Agostino de Hipona ou Al-Ghazali.

É altura para recordar que, em boa verdade, a relação entre conhecimento, por um lado, e religião, autoritarismo ideológico e interesses económicos, por outro, é conflituosa. Mas enquanto os grupos económicos têm uma postura anti ciência seletiva e pragmática (por exemplo: as petrolíferas prezam a geologia, mas rejeitam a ecologia), já o conflito com as religiões e ideologias totalitárias é epistemológico. Estas duas últimas fundamentam-se em argumentos de autoridade para proclamar a verdade revelada, da qual, naturalmente, são os detentores exclusivos. Já a herança helénica, baseada no livre pensamento, foi o solo donde vicejou o conhecimento filosófico e científico e que não é conciliável com tiranias políticas ou outras.

Outro histrião da pandilha, Elon Musk, tem vindo a cortar verbas destinadas a vários projetos de investigação científica e a universidades, de forma escandalosamente acéfala.

Resumindo: o conhecimento está sob fogo da administração Trump, que não esconde as inclinações religiosas fundamentalistas, muito menos a tendência autoritária. Não é por acaso que, em paralelo, a democracia e o saber estão em declínio rápido nos EUA. Caminhamos para o modelo obscurantista idêntico ao que condenou Galileu, remeteu a obra de Copérnico para a fogueira, perseguiu o livre pensamento com a ferocidade dum Torquemada, ou encerrou o Liceu de Atenas..