A decisão do novo presidente dos EUA de abandonar a Organização Mundial de Saúde (OMS) é uma tragédia não só para a saúde global, como para o multilateralismo, a paz e o respeito pelas instituições que trabalham para o bem comum.
A OMS implementa programas de saúde em colaboração com diversos parceiros, incluindo estados, regiões, ONG e instituições. Desenvolve e partilha guiões, normas e conhecimento técnico, com o objetivo de promover a equidade em saúde. Não menos importante, a OMS é a organização de excelência para o avanço da saúde global, diplomacia da saúde e que garante a segurança da saúde global.
No primeiro mandato, a hostilidade de Trump perante as instituições internacionais foi notória. Neste período, os EUA recusaram liderar a saúde global, mesmo durante a pandemia. Optaram por um nacionalismo de vacinas, pouca colaboração com as instituições internacionais e um recuo das suas responsabilidades na OMS.
Agora teremos uma versão reforçada desta política. A justificação oficial – os EUA contribuem mais que a China – simplesmente não convence. As contribuições para a OMS são calculadas em função da riqueza de cada país. Para o orçamento 2024-2025, os EUA irão contribuir com 260 milhões de dólares. No mesmo período, as contribuições da China serão de 175 milhões. Como comparação, as contribuições obrigatórias de Portugal correspondem a pouco mais de 4 milhões de euros.
Há um problema com o financiamento da OMS que não pode ser ignorado. As contribuições obrigatórias apenas cobrem uma pequena fração dos gastos desta organização. 80% do seu financiamento é obtido através de contribuições voluntárias, normalmente consignadas a projetos específicos. Neste capítulo, as contribuições dos EUA são bem superiores às chinesas, 700 milhões vs 30 milhões. Embora seja importante recordar o caracter voluntário das mesmas, e a forma como este investimento na saúde global permite manter o país na liderança da diplomacia da saúde, com todos os benefícios que daí advêm. Fazendo o mesmo exercício para Portugal, as nossas contribuições voluntárias ascendem a 3 milhões de euros, na sua maioria, consignados a projetos de melhoria do acesso aos cuidados de saúde em África.
A saída dos EUA da OMS significa que pela primeira vez em 80 anos, o país estará de fora da maior organização de saúde. As dinâmicas diplomáticas sofreram, sem dúvida, um ajuste e um enorme retrocesso. A cooperação ficará cada vez mais restrita aos blocos diplomáticos, em vez de uma procura solidária de melhorar o acesso e a equidade em saúde para todos. Num recente texto na Lancet, Ilona Kickbush diz que este grave recuo da saúde global arrasta o mundo até 1851, ano da primeira convenção internacional sobre segurança sanitária, sugerindo um retrocesso a um período anterior à cooperação internacional em saúde.
Não deixa de haver um toque de ironia nas vistas curtas da nova presidência americana. Preocupados com uma suposta influência e liderança chinesa na diplomacia da saúde, entregam totalmente este campeonato a Pequim. Além da saída da OMS, o fim do apoio a projetos bilaterais significa que os 50 mil milhões de dólares de investimento e doações chinesas a África, onde parte considerável destas verbas irá para o setor da saúde, serão mais valiosos e produzem mais efeitos positivos para a estratégia chinesa.
A saúde é cooperação e solidariedade. A União Europeia tem de se assumir como líder da saúde global, preocupada com o acesso aos cuidados de saúde e com a equidade. A nossa liderança, sem arrogância e envolvendo todos os parceiros e países, é a chave para salvar a saúde do planeta.
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