Comecemos ao contrário: cancro sabemos todos o que é. Aquela doença que nos leva os entes queridos, as mães, os pais, os filhos... Aquela doença que, até há bem pouco tempo, não se lia nos jornais ou nas revistas, a tal doença prolongada.
O cancro é desonesto. Surge em pessoas saudáveis, que fazem desporto, que não cometem loucuras, que não fumam nem bebem. Claro, também surge nas outras, mas nessas já nos parece mais normal, afinal não tinham um estilo de vida saudável… Errado.
A maioria dos cancros surge por uma combinação de fatores que não conhecemos, ou se conhecemos, dominamos mal. Existem fatores de risco conhecidos, mas, ainda assim, ou não os podemos controlar (como ter aqueles genes de que todos falam, como os da Angelina Jolie) ou insistimos em mantê-los, na esperança de que a doença nunca nos bata à porta – sim, estou a falar do tabaco, o maior agente promotor de cancro e outras doenças da história e que, ainda assim, continua a fazer parte do quotidiano de muitas.
Um vírus que pode ser evitado
Boas notícias para as mulheres (e para todos os que as amam…). O cancro do colo do útero é causado por um vírus. Um vírus que pode ser facilmente detetado através de um exame ginecológico banal, igual à colheita do Papanicolau. Um vírus que transforma e modifica as células do colo do útero e causa lesões, passíveis de serem identificadas pelo teste de Papanicolau e tratadas mesmo antes de se tornarem cancro. Um vírus para o qual existe uma vacina eficaz e segura.
Sim, este vírus é o vírus do papiloma humano, mais conhecido por HPV. Existem 200 tipos diferentes, sendo que cerca de 40 podem infetar o trato genital inferior (vulva, vagina e colo do útero) e causar doenças. Os tipos de HPV que podem causar cancro são denominados de alto risco e os que, habitualmente, se associam aos vulgares, mas muito incomodativos condilomas genitais, são os de baixo risco. No caso particular do cancro do colo do útero, o HPV está presente em quase 100% de todos os tipos. Para além deste, os HPV de alto risco também podem causar cancro da vagina, da vulva, do ânus e da orofaringe.
Sabe-se que, ao longo da vida, cerca de 80% das pessoas sexualmente ativas vão entrar em contacto com o HPV. É um vírus que infeta a pele e as mucosas e que se transmite com facilidade quando há contacto sexual. Não é preciso ter tido muitos parceiros para se ter contacto com o HPV – na realidade, basta um. O preservativo é protetor, mas, ainda assim, não é completamente eficaz em cerca de 30% dos casos.
Sim, provavelmente iremos todos ter um ou dois HPV em alguma altura da nossa vida, mas isso não significa que vamos ficar infetados ou ter cancro. As infeções por HPV são, na grande maioria dos casos, assintomáticas e transitórias, mas, em cerca de 10% dos casos, a infeção pode tornar-se persistente e aí sim, se não for identificada e tratada, pode levar ao desenvolvimento de doenças.
HPV também ataca os mais saudáveis
Existem tipos de HPV de alto risco que, mesmo em indivíduos saudáveis, causam lesão persistente devido à sua agressividade. Por outro lado, mesmo o mais saudável dos Hércules pode, de vez em quando, baixar a sua imunidade e não conseguir eliminar o vírus.
E para todos os que achavam que o HPV só afeta as mulheres, cá vai: o HPV nos homens também é responsável pelo cancro do pénis e do ânus, sendo que para estes não existe nenhum tipo de rastreio.
Assim sendo, e voltando à pergunta inicial que nos trouxe aqui, é possível prevenir o HPV?
Bem, na verdade não, a não ser que nunca cheguemos a iniciar a nossa atividade sexual, o que seria bastante complicado em termos de continuidade da espécie e felicidade global. Para o resto dos mortais, o que se pode fazer é prevenir a infeção persistente ou, quando já é tarde para isso, prevenir a evolução das lesões que antecedem o aparecimento do cancro. É aqui que entram as vacinas e os programas de rastreio.
Desde há muito que conhecemos o impacto das vacinas sobre o aumento da qualidade e esperança de vida em todo o mundo. Perdoem-me os que advogam a imunidade “natural” e “inata” que penso que existiria nos tempos da gripe espanhola (e que não terá sido muito eficaz), mas a verdade é que os planos de vacinação vieram trazer um aumento da esperança e qualidade de vida a todos os que deles usufruem.
Vacinas com eficácia garantida
Voltando ao nosso tema, desde 2006 que existem, em Portugal, vacinas contra o HPV e, desde 2008, que esta vacinação faz parte do plano nacional de vacinação para as meninas a partir dos 10 anos de idade.
É importante referir que tanto as mulheres como os homens podem ser infetados e desenvolver doenças. As vacinas contra o HPV foram estudadas em ambos os sexos e a eficácia está garantida, muito para além das idades mais jovens. Como em qualquer vacina, a capacidade de gerar anticorpos e combater as infeções, é maior na infância. Isso não significa que não exista na idade adulta.
Por outro lado, é importante perceber que o risco de infeção ao HPV não desaparece à medida que a idade avança e que a vacinação tem sempre benefícios. Muitas vezes, é aos 50 anos que a vida muda de direção e se encontram novos amores e sonhos (e diferentes tipos de HPV até então desconhecidos que podem não ser assim tão glamorosos…).
O outro grande pilar da prevenção do cancro consiste no rastreio, que tem como objetivo principal identificar o cancro em fases iniciais e curáveis e, nos casos em que é aplicável, identificar as lesões pré-cancerígenas. Mais uma vez, venham as boas notícias! Até se transformarem em cancerígenas, as células infetadas de forma persistente pelo HPV sofrem modificações que podem ser identificadas e tratadas.
Todas as mulheres, a partir do momento em que iniciam a sua vida sexual, devem ir regularmente ao médico, seja de Ginecologia ou de Medicina Geral e Familiar, para fazer o seu rastreio do cancro do colo do útero. Agora as más notícias: continua a ser preciso subir para aquela marquesa quase tão má como a cadeira do dentista. Enfim, talvez apareça uma maneira melhor de o fazer, mas ainda não deve ser antes desta edição.
Dito por outras palavras, o que podemos fazer para prevenir a infeção ao HPV é vacinar e rastrear, sem esquecer obviamente o estilo de vida saudável e deixar de fumar, já que estas medidas aumentam a capacidade de eliminar o vírus espontaneamente. O tabaco é um dos principais fatores de risco para a persistência do HPV e para o desenvolvimento do cancro do colo – sem excluir todas as outras doenças e cancros pelo qual é responsável.
Um artigo da autoria da médica Paula Ambrósio, especialista em ginecologia e obstetrícia no Hospital Vila Franca de Xira.
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