“A covid-19 veio mostrar que o espetro da fome continua a rondar Cabo Verde”, disse o autor em entrevista à Lusa por telefone desde a Praia a propósito do seu livro “Cabo Verde: Um corpo que se recusa a morrer – 70 anos contra a fome”, publicado na semana passada.
O livro conta a história da luta contra a fome em Cabo Verde desde o Desastre da Assistência, que em 1949 matou, oficialmente, 232 pessoas quando um muro se abateu sobre centenas de pessoas que se encontravam concentradas para receber ajuda alimentar.
Na altura, Cabo Verde vivia uma situação de fome e a catástrofe, então considerada a mais grave tragédia ocorrida no Ultramar Português e cujo balanço real pode ter chegado a 800 mortos, teve alguma repercussão a nível internacional, com notícias na Austrália, Estados Unidos ou Canadá, apesar da censura do Estado Novo.
Num momento em que a carta fundadora da Organização das Nações Unidas (ONU), então recém-formada, dizia que as potências coloniais tinham responsabilidade sobre as questões alimentares nos territórios colonizados, e sendo Portugal a potência que administrava Cabo Verde, o acidente “acabou por ser um grande embaraço para o Estado português”, contou o jornalista.
O embaraço foi tal, acrescentou, que “só a partir dessa tragédia é que a questão alimentar em Cabo Verde passou a ser encarada” de forma séria.
“Não é por acaso que depois de 1949 não houve mais crises famélicas”, algo que acontecia com frequência no arquipélago devido às condições climatéricas.
Segundo escreve no seu livro, “a contar desde 1719, Cabo Verde vive [desde 1949] os primeiros setenta anos da sua existência sem registo de uma crise famélica”.
Ainda assim, reconhece, “o fantasma da fome do passado reapareceu com muita força” desde que a pandemia de covid-19 chegou ao arquipélago, em março de 2020.
“Quando comecei a escrever o livro estava convencido de que esta questão da fome era assunto do passado”, reconhece José Vicente Lopes.
No entanto, com a chegada da pandemia a Cabo Verde, “o fantasma da fome do passado reapareceu com muita força”.
A pandemia veio também mostrar a precariedade da vida em Cabo Verde, país que, mesmo em anos agrícolas bons, importa 80% dos alimentos que consome, segundo o livro de José Vicente Lopes.
Além disso, sublinha também o autor, o facto de não haver crises famélicas “não significa (…) que tenha deixado de haver famílias em situação de penúria alimentar ou até mesmo de fome”.
Com a pandemia, lembrou ainda, o setor do turismo, de que depende fortemente a economia cabo-verdiana, praticamente paralisou e a economia teve uma recessão de quase 15%, o que “implicou estragos terríveis a vários níveis da sociedade cabo-verdiana”, lamentou.
José Vicente Lopes disse acreditar que o número de pessoas a passarem por necessidades alimentares tenha aumentado desde que a covid-19 chegou a Cabo Verde.
“Acho que toda a gente tem essa consciência, apesar do esforço que o Estado foi fazendo para evitar situações mais críticas no país”, concluiu.
No entanto, sublinhou que os piores receios não se concretizaram e “não há nada que se pareça” com uma situação de fome declarada no país até agora.
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