A Rússia foi dos primeiros países a ter vacinas disponíveis para a sua população. Neste momento, tem quatro diferentes vacinas disponíveis. A sua principal, Sputnik V, encontra-se disponível em 69 países, com bons resultados de segurança e eficácia. No entanto, a Rússia permanece bastante atrasada no seu programa de vacinação, com apenas 25% da população totalmente vacinada. A chegada da variante Delta provocou uma terrível 3ª vaga, com recorde de novos casos e um pico na mortalidade sem precedentes, que desde julho, coloca a Rússia no topo da mortalidade mundial.
O que causa este atraso na vacinação? Existe uma razão técnica, menos relevante hoje, assim como, o fenómeno que nós tão bem conhecemos: uma mistura pseudociência, obscurantismo e difusão de teorias da conspiração. Não é exclusivo da sociedade russa, é apenas mais intenso.
Começando pela questão técnica. A Sputnik V é uma vacina que utiliza a tecnologia de vetor viral. Esta tecnologia produz um desafio que deve ser ultrapassado, para que a vacina seja eficaz: como garantir que o corpo não tenha imunidade ao vetor, diminuindo assim a eficácia da vacina. Por este motivo, são utilizados adenovírus pouco prevalentes na população humana, ou que normalmente infetam chipanzés. A Sputnik, ultrapassou este problema tendo dois adenovírus diferentes, ou seja, o vetor viral da primeira dose, não é o mesmo que o presente na segunda dose.
Em teoria, esta solução torna a vacina mais eficaz, mas na prática, acrescenta mais um desafio logístico. Se a primeira dose não é igual à segunda, significa que a mesma vacina necessita de dois circuitos de produção e logística autónomos. Numa fase inicial, este foi um fator que contribuiu para o lento avanço da vacinação no país.
Como é que um país que sempre respeitou a ciência e a vacinação, se tornou um dos epicentros pseudociência e da mensagem anti vacinação? Falamos do país, onde a corte imperial de Catarina a Grande recebeu a inoculação para a varíola em 1768. Onde as vacinas soviéticas foram fundamentais para erradicar varíola e ganhar a batalha da poliomielite.
A confiança demora anos a contruir, mas é destruída rapidamente. No ocidente, conhecemos bem este fenómeno, quando o desonesto Wakefield, em 1998, publicou um texto relacionando a vacina do sarampo com o autismo. Na Rússia, o momento chegou dez anos mais cedo, quando no jornal Komsomol’skaya Pravda, com uma tiragem diária de 22 milhões de exemplares, foi publicado um texto com o título “Nós representamos um problema”.
Todos os argumentos clássicos anti vacinação estavam presentes, desde que a redução das doenças não estava relacionada com a vacinação, mas apenas devido ao desenvolvimento económico, ou que a vacinação era obra de interesses obscuros e que apenas prejudicavam as crianças. Num contexto de perda de legitimidade política, grupos da oposição, a igreja ortodoxa e segmentos da comunidade médica adotaram e amplificaram os argumentos. O resultado foi imediato, logo no princípio dos anos 90, o colapso da União Soviética e a desconfiança nas vacinas, trouxeram uma epidemia de difteria, que causou 13 mil casos com 650 óbitos. O sarampo voltou, continuando por controlar até aos dias de hoje. No último grande surto, em 2018, mais de metade dos 41 mil casos da região europeia, ocorreram na Ucrânia e Rússia.
Num país com mais praticantes de medicinas alternativas, que médicos, é natural que estas ideias tenham ganho raízes profundas. Quando a pandemia chegou, encontrou uma campanha de desinformação já bem montada e influente. Um governo autocrático, ajuda a alimentar teorias da conspiração sobre a origem da doença, tornando igualmente a recusa da vacinação, como um ato de resistência ao Kremlin.
Numa sondagem de maio, 60% dos russos afirma rejeitar a Sputnik V, valor que permanece inalterado desde agosto 2020. Estes dados demonstram, claramente, que a comunicação não está a ser eficaz. É preciso transparência das autoridades, adaptar a mensagem e mobilizar o rico legado científico do país, para que a Rússia acelere o seu programa de vacinação e deixe de ser um perigoso reservatório do Sars-CoV-2.
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