Em entrevista exclusiva ao Healthnews, António Conceição Presidente da Portugal AVC – União de Sobreviventes, Familiares e Amigos traça um diagnóstico da realidade nacional no que toca às doenças cérebro-cardiovasculares (DCCV). Sem negar os avanços alcançados, como a criação da Via Verde do AVC e as Unidades especializadas que permitem beneficiar da intervenção terapêutica mais eficaz, o responsável aponta para a necessidade de se fazer mais, com urgência. Afinal, diz, “apenas cerca de 50% dos casos tem acesso a estas unidades”. A criação de uma consulta do sobrevivente de AVC nos cuidados de saúde primários, periódica, a exemplo do que já acontece para outras patologias, mesmo que apenas para utentes referenciados, parece um passo muito importante a dar, aponta.
HealthNews (HN) Apesar dos avanços na inovação, diagnóstico e intervenções, mortalidade por DCCV não tem diminuído. Porquê? Em sua opinião, as políticas da saúde, deveriam dar mais relevância ao tema?
António Conceição (AC) – As DCCV em geral, e em particular o AVC – realidade que conheço melhor, como presidente da Portugal AVC – União de Sobreviventes, Familiares e Amigos -, continuam a ser a 1ª causa de morte e a 1ª causa de incapacidade em Portugal.
E estão muito longe de merecer a atenção política e mediática que deviam ter. Nunca foram, e cada vez menos podem ser consideradas como tal, doenças de velhos, ou que só atingem pessoas com hábitos desregrados. São uma realidade, transversal a rigorosamente todas as idades, que atinge um número seguramente bem superior a duas centenas de milhar de portugueses. A que acrescem cuidadores e familiares, que veem, frequentemente, a sua vida fortemente condicionada.
Têm um impacto e números, nas pessoas, nas famílias, na sociedade, no próprio Estado, que não podem deixar de nos preocupar a todos.
É imperioso que tenhamos um efetivo plano nacional, que abranja desde a prevenção – sempre prioritária – até à vida após o AVC.
HN – Falando ainda do AVC, os avanços alcançados, como a Via Verde do AVC, entre outros chegam já à generalidade da população, nomeadamente no socorro imediato?
AC – Embora subsistam disparidades, sobretudo em algumas regiões, é um facto que se tem dado passos que comparam bem com o contexto europeu: antes de mais a Via Verde do AVC, e mesmo, com maior dificuldade, as Unidades especializadas que permitem beneficiar da intervenção terapêutica mais eficaz.
É certo que, a nível nacional, ainda apenas cerca de 50% dos casos tenha acesso a estas unidades (recordo que o Estado Português, e muito bem, subscreveu o Plano de Ação para o AVC na Europa, comprometendo-se a tratar pelo menos 90% de todas as pessoas que sofrerem AVC numa unidade dedicada).
HN – O sistema de saúde parece estar muito focado na resposta imediata a eventos agudos como AVC e enfarte. Como podemos melhorar o acompanhamento dos doentes após esses eventos e garantir uma prevenção secundária mais eficaz?
AC – Após a fase aguda é que se agrava, e muito, o panorama de duas realidades, que são indissociáveis: a prevenção secundária e a reabilitação.
Temos de tomar consciência que a prevenção secundária, é tão importante como a primária. Em Portugal, cerca de um terço dos AVC são repetições. Sabemos que os sobreviventes de AVC, em geral, têm o risco aumentado. Por isso mesmo, é essencial que as consultas de seguimento, aconteçam também na fase crónica, no máximo, com periodicidade anual. Em que podem e devem ser seguidos, não só os motivos que estiveram na base do primeiro episódio, como os principais fatores de risco, se avalie periodicamente a reabilitação, e aconselhe sobre o estilo de vida e o exercício físico. É fundamental, mas, presentemente, não acontece em boa medida!
A criação de uma consulta do sobrevivente de AVC nos cuidados de saúde primários, periódica, a exemplo do que já acontece – e bem! – para outras patologias, mesmo que apenas para utentes referenciados, parece um passo muito importante a dar. É certo que o AVC pode ter diferentes causas, algumas já abrangidas pelas tais patologias, mas é um evento demasiado complexo, que pode exigir acompanhamento permanente, antes de mais para evitar que se volte a repetir.
HN – A reabilitação após eventos como AVC e EAM é crucial para minimizar sequelas crónicas. Quais são as principais barreiras que os pacientes enfrentam no acesso a programas de reabilitação e como pode o sistema de saúde trabalhar para superar essas barreiras?
AC – Assegurar a reabilitação, coordenada por especialista em medicina física e reabilitação, multidisciplinar, que pode abranger fisioterapia, terapia da fala, terapia ocupacional, enfermagem de reabilitação, psicologia, nutricionistas, eventualmente outros profissionais, começando logo após o evento, com qualidade e eficácia, e sem tempos pré-estabelecidos, é absolutamente fundamental. Só que isto não se verifica, para a grande maioria das pessoas.
É preciso que se perceba claramente que a reabilitação, além de ser um direito – aliás, se preciso fosse, consagrado pela Carta das Nações Unidas -, não é um custo, mas um claro investimento com retorno.
Há suporte científico e segurança para afirmar que muitos cuidados de reabilitação são custo-efetivos na melhoria dos resultados funcionais.
A reabilitação é muito importante para o doente cardíaco, e extremamente crucial para o sobrevivente de AVC.
HN – A Coligação “Nação Invisível” defende a implementação de programas de reabilitação multidisciplinar acessíveis a todos. Como estão a ser desenvolvidos e financiados esses programas? Quais são os desafios enfrentados para garantir uma acessibilidade universal?
AC – É preciso que se diga que há disparidades gritantes, conforme a unidade de saúde em que se é atendido, a localização geográfica, a capacidade económica, os seguros ou subsistemas de saúde, o acesso à informação dos sobreviventes e famílias, e outras desigualdades.
Não há ainda, muito infelizmente, programas pensados, de forma transversal, para alterar este panorama.
A sensibilização da importância da reabilitação é fundamental e urgente. Em particular do AVC, um evento de saúde de instalação súbita, em que o tempo e a qualidade assumem um papel fulcral na máxima recuperação possível.
Por isso, defendemos há muito, um Plano Nacional. Até conseguimos que houvesse uma Resolução da Assembleia da República, aprovada por unanimidade, que, cito, “que defina e implemente uma estratégia de acesso à reabilitação para sobreviventes de acidente vascular cerebral”. Mas, até ao momento, pouco ou nada se avançou…
A reabilitação e as fases posteriores do circuito de cuidados e tratamento do AVC, têm sido relativamente negligenciados pelo sistema de saúde. A reabilitação não pode continuar a ser o “parente pobre” do sistema de saúde!
HN – Atualmente, cerca de 80% das pessoas que sofrem AVC sobrevivem ao evento. No entanto, uma percentagem significativa das pessoas fica com sequelas incapacitantes. Que se poderá fazer para melhorar a vida destes sobreviventes, e com que custos?
AC – É sabido que sobreviver com sequelas, pode ter grandes implicações para a vida, a família e a sociedade em geral. Aponta-se que dois terços das pessoas vivem com alguma incapacidade física, quase dois em cada cinco apresentam depressão, e cerca de 30% desenvolve compromisso cognitivo. Além disso, os sobreviventes de AVC, somos muito mais propensos do que pessoas que não sofreram AVC, a viver com outra doença. Com o objetivo de otimizar a funcionalidade e autonomia, a reabilitação pode constituir um serviço poderoso que salva vidas, reintegra pessoas e minimiza custos para as famílias e sociedade. Quando tem qualidade e eficácia, claro!
Porque também ao longo da vida, quando até já não são de esperar objetivamente melhorias muito significativas, o sobrevivente de AVC pode precisar da continuidade da reabilitação. Evitando, tão comuns, regressões e agravamentos, contribuindo para a melhoria ou manutenção da qualidade de vida possível, e evitando também o surgimento de acrescidos problemas de saúde, com maiores encargos sociais e económicos, para as famílias e para o Estado e a sociedade.
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