“Os americanos gastam atualmente mais dinheiro em fast food do que em ensino superior, computadores pessoais, software ou carros novos”.
Eric Schlosser, Fast Food Nation, 2001
Desde a publicação de Fast Food Nation de Eric Schlosser em 2001 e a exibição do file de Morgan Spurlock, Super Size Me, em 2004, tornou-se moda atacar a fast food como principal causa da atual epidemia de obesidade que se apoderou do mundo desenvolvido e que está a alastrar rapidamente para o mundo em vias de desenvolvimento. Todavia, o conceito de fast food não é, em si, o culpado.
A fast food existe desde a Antiguidade sob a forma de uma refeição portátil e convenientemente embalada que pode ser consumida no trabalho, nos campos, em viagem e em feiras estivais. Todas as culturas alimentares têm as suas próprias versões de fast food: a pizza napolitana, que começou como uma fatia de pão aromatizada com alho, azeite e puré de tomate – sem mais nada; a inglesa sanduiche - feita pela primeira vez segundo a lenda, pelo quarto conde de Sandwich (1718-92) numa certa noite em que ele estava a jogar às cartas; o pastel da Cornualha, um invólucro de massa recheado com carne e legumes que era consumido pelos mineiros de estanho no oeste da Inglaterra; o cachorro-quente, que remonta à Alemanha em 1480, quando foi oferecido aos cidadãos de Frankfurt como presente por ocasião da coroação; e o hambúrguer, reivindicado por meia dúzia de cozinheiros americanos no final do século XIX.
A tempestade perfeita
Se a fast food contribuiu de maneira significativa para a crise da obesidade – e são hoje poucas as pessoas que poderão argumentar convincentemente em contrário -, não é a ideia de uma “alimentação de conveniência” que é a causa, mas sim a interação dos fatores sociais, económicos e dietéticos que se combinaram para transformar algo saudável, saboroso e conveniente em algo física e socialmente tóxico. Este artigo vai dedicar-se à combinação hambúrguer-batatas fritas-refrigerante porque é a forma mais popular de fast food comercializada atualmente, seguindo a sua evolução desde um qualquer lugarejo popular algures nos EUA do final do século XIX, até à sua encarnação atual como elemento fulcral do gigante global multibilionário do fast food.
A fast food existe desde a Antiguidade sob a forma de uma refeição portátil e convenientemente embalada que pode ser consumida no trabalho, nos campos, em viagem e em feiras estivais.
Um pastel de carne moída estufada dentro de um pão – o que poderia ser mais simples e mais conveniente? É de admirar que ninguém tenha pensado nisto antes de 1885, a data reivindicada pelos dois primeiros rivais concorrentes ao título de inventor do hambúrguer: Charles Nagreen, de Seymour, Eisconsin, que espalmou uma almôndega de carne de vaca entre duas fatias de pão para ser mais fácil de comer, na Outagamie County Fair daquele mesmo ano; ou os Menches Brothers que também fizeram o primeiro “hambúrguer” na Erie County Fair, em Hamburg, Nova Iorque, quando ficaram sem recheio de carne de porco para as suas sanduíches. Estes irmãos deram o nome de hamburger sandwich à sua criação. No entanto, um terceiro candidato seria Fletcher Davis, de Athens, Texas, que não tinha quaisquer pretensões, mas afirmava ter feito sanduíches de carne moída em Athens no fim da década de 1880, vendendo-as depois na Feira Mundial de St. Louis de 1904.
A provável verdade é que todos eles, e mais uns quantos pretendentes da década de 1900, tenham tido a mesma ideia separadamente, tendo-se a receita depressa espalhado da feira local à feira mundial, do pequeno restaurante à rulote: era simples, caseira, saudável, barata, fácil de fazer e fácil de comer em movimento.
O nascimento dos gigantes
Agora que descobrimos as origens do campeão de vendas da fast food, podemos passar ao capítulo seguinte da história: o desenvolvimento dos estabelecimentos de fast food. Estes são completamente diferentes de um restaurante convencional, com mesas, cadeiras e empregados de mesa. São um cruzamento entre uma rulote, um bar e um restaurante. O cliente entra, faz o seu pedido ao balcão, come-o em assentos funcionais ou leva-o consigo. O primeiro destes estabelecimentos, que abriu as suas portas em Providence, Rhode Island, em 1872, funcionava com base numa carroça e levava as suas refeições até ao portão das fábricas. O desenvolvimento significativo seguinte foi a cadeia de restaurantes Automat, que abriu as suas primeiras filiais em Filadélfia, Pensilvânia, em 1902, e em Nova Iorque, em 1912. O Automat foi o primeiro estabelecimento genuíno de fast food, embora, em vez de ter um balcão, os pratos fossem distribuídos em máquinas de venda que separavam os clientes da área da cozinha.
Finalmente, em Wichita, Kansas, em 1921, Billy Ingram e Walter Anderson fundaram a White Castle Co., a primeira cadeia de restaurantes de hambúrgueres de baixo custo e grande volume de vendas em termos mundiais. A principal contribuição da White Castle para a fast food seria permitir que os clientes vissem os seus hambúrgueres a ser grelhados.
Antes que a fast food pudesse vingar nos EUA, várias alterações sociais de monta teriam de acontecer. A primeira foi o desenvolvimento da cultura do automóvel
Todos os ingredientes da indústria de fast food estavam finalmente reunidos: o hambúrguer, o sistema de pedido e serviço, e a forte imagem de marca. Mas antes que a fast food pudesse vingar nos EUA, várias alterações sociais de monta teriam de acontecer. A primeira foi o desenvolvimento da cultura do automóvel, que teve lugar depois da Primeira Guerra Mundial, quando a Ford tornou os carros verdadeiramente acessíveis; a segunda foi a suburbanização; e a terceira foi a emancipação da mulher.
A suburbanização afastou as pessoas dos centros urbanos, onde se encontravam concentrados os mercados tradicionais, mercearias e restaurantes, permitindo assim o desenvolvimento de um novo tipo de restaurante que servia uma base de clientes mais móvel. E a emancipação da mulher implicou que as mães trabalhadoras tivessem cada vez menos tempo para fazer compras e cozinhar para a família, passando a ser mais provável que esta última fosse comer fora.
A linha de montagem chega ao fast food
Falamos em fast food e vem-nos naturalmente à ideia um nome – ou deveríamos antes dizer uma letra gigante? A McDonald´s, todavia, teve origens bastante humildes. O McDonald´s original, com o nome dos seus proprietários, os irmãos Richard “Dick” (1909-98) e Maurice “Mac” (1902-71), era pouco mais do que uma barrava de churrasco drive-in. Que eles abriram em San Bernardino, Califórnia, em 1940. Em 1948, os irmãos reformularam o estabelecimento, oferecendo uma ementa simplificada de hambúrgueres, batatas fritas, batidos, café e Coca-Cola, tudo servido em embalagens descartáveis. Introduziram o “Speedee Service System”, que aplicava os métodos da linha de montagem de Henry Ford à preparação de alimentos. Em 1953, franchisaram outros dois restaurantes McDonald´s, o primeiro em Phoenix, Arizona, e o segundo em Downey, Califórnia. O sucesso despertou a atenção do seu fornecedor de máquinas de batidos, Raymond Kroc (1902-84). Kroc percebeu de imediato o enorme potencial do conceito McDonald´s e entrou no negócio com os irmãos em 1954. A relação não foi muito feliz, porque Dick e Mac não queriam uma cadeia nacional de restaurantes franchisados com o nome deles. Em 1961, Kroc compraria a parte dos irmãos por 2,7 milhões de dólares – sem dúvida o negócio do milénio -, incluindo os direitos de utilização do nome McDonald´s.
A McDonald's é atualmente a “vedeta” da indústria da fast food. Em 1998, tinha cerca de três mil restaurantes fora dos EUA continentais: hoje em dia, é o maior retalhista alimentar do mundo, com 31 mil estabelecimentos em 119 países, empregando 1,5 milhões de funcionários e alimentando cerca de 47 milhões de consumidores felizes todos os dias. A unidade mais movimentada situa-se em Moscovo, na Rússia, e a maior fica em Pequim – uma interessante nota de rodapé da Guerra Fria, sem dúvida. Mas a McDonald's é apenas a ponta de um icebergue de fast food com proporções verdadeiramente gigantescas rumo ao qual a Humanidade, a bordo do navio RMS Titanic, segue a todo o vapor. Entre os concorrentes da McDonald's, a Burger King tem mais de 11 100 estabelecimentos, a Wendy´s conta com 6500; a KFC pode ser encontrada em 25 países; a Subway possui 29 186 restaurantes em 86 países; a Pizza Hut existe em 26 países; a Taco Bell possui 278 restaurantes em 12 países que não os EUA. Em 2006, o mercado global de fast food totalizava 102 mil milhões de dólares, representando um volume de 80 mil milhões de transações. O maior crescimento regista-se no mundo em vias de desenvolvimento, tanto tempo privado dos benefícios do Big Mac. Na predominantemente vegetariana Índia, por exemplo, a indústria da fast food está a crescer a um ritmo anual de 40%.
Na predominantemente vegetariana Índia, por exemplo, a indústria da fast food está a crescer a um ritmo anual de 40%.
Dois dos críticos mais mordazes e mais conhecidos da fast food são o jornalista Eric Schlosser, que escreveu Fast Food Nation (2001), e o documentarista Morgan Spurlock, que realizou e protagonizou Super Size Me (2004). O livro de Schlosser é uma denúncia das práticas de fabrico e comercialização desta indústria. Ele realça questões laborais e de saúde incluindo a disseminação da encefalopatia espongiforme bovina (BSE), mais conhecida como “doença das vacas loucas”, e a escolha das crianças como alvo da indústria de fast food por meio da publicidade e da alimentação escolar subsidiada. Spurlock adotou uma abordagem muito mais prática: ficou famoso por seguir uma “McDieta” de 30 dias, comendo exclusivamente num McDonald´s três vezes ao dia e fazendo apenas a quantidade mínima diária recomendada de exercício. O seu consumo médio de 5000 Kcal (aproximadamente o dobro do que realmente precisava) aumentou-lhe o peso corporal em 11,1 Kg e o índice de massa corporal em 13%. Ele e a sua equipa médica referiram um vasto leque de outros efeitos psicológicos e fisiológicos da “McDieta”, de problemas no fígado a disfunção sexual.
“Um traficante junto aos portões das escolas”
A indústria da fast food tornou-se algo semelhante a um traficante junto aos portões da escola, impingindo produtos não saudáveis cheios de gorduras trans, xarope de milho com alto teor de frutose e aditivos tanto a adultos como a crianças. Tornou estes produtos extremamente baratos e saborosos – com todas as gorduras, açúcares e aromatizantes. Deixámo-nos ir na conversa e, surpresa das surpresas, o resultado é uma epidemia de obesidade com os seus muitos problemas de saúde associados.
Vários críticos comparam o comportamento atual das principais empresas de fast food com o das tabaqueiras nas décadas de 1970 e 1980. Mas, atenção, a comida não é uma substância fisiologicamente viciante como a nicotina ou a heroína. Ninguém acorda aos gritos a meio da noite e vai a correr a um McDonald’ s, Taco Bell ou Pizza Hut, levado por um desejo irresistível de uma dose de gordura monoinsaturada ou xarope de milho. Se a indústria da fast food deve assumir a responsabilidade pela produção e venda de lixo comestível barato e saboroso, também temos de aceitar a nossa parte da culpa porque o compramos e comemos.
A fast food é um exemplo clássico de um tipo particular de consequência imprevista: o efeito de combinação. Ao contrário de algumas das “más” invenções isoladas, como o arsénico ou a navalha de ponta e mola, a fast food consiste num grande número de diferentes inovações – o hambúrguer, o conceito de restaurante, a batata frita e assim por diante -, as quais, isoladas, não têm efeitos prejudiciais particularmente acentuados, mas, quando combinadas, têm consequências negativas muito graves para o bem-estar humano. É realmente um caso em que todo é muito pior do que as partes. E é aqui que reside o grande problema de encontrar uma solução para os problemas criados pela fast food. Embora os legisladores possam proibir a venda e a produção de produtos químicos nocivos e criminalizar o uso de armas em público, nunca hão de proibir a demasiado e popular combinação de hambúrguer-batatas-fritas-refrigerante.
Este artigo é um excerto do livro As Piores Invenções da História, da autoria de Eric Chaline e publicado em Portugal pela editora Marcador.
Eric Chaline é formado pela Universidade de Cambridge e pela Escola de Estudos Africanos e Orientais, em Londres, foi editor da Kodansha Publishers. Entre os livros da sua autoria podem encontrar-se títulos como Artes Marciais para Fitness e as Piores Deceções da História. Eric Chaline vive e trabalha atualmente em Londres.
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