Gadus morhua, o nome é proferido enfaticamente; dois termos que, mais correntemente, se condensam num só resultando numa palavra bem mais familiar e próxima dos portugueses e da mesa nacional. Gadus morhua é o nome científico para o Bacalhau. O termo em latim é escolhido por José Branco, proprietário da Bacalhoeira Silva, contígua à Manteigaria Silva, na Baixa lisboeta. José, faz-nos  desta forma a apresentação a uma espécie que, não obstante habitar os frios mares do Atlântico Norte, tem lugar cativo em muitas ementas meridionais.

José Tabuaço Branco, natural do Porto, fala e mexe no Bacalhau com segurança. O olhar já percorreu a qualidade a milhares de toneladas de peixe e as mãos sabem tomar o peso, classificar o animal com uma sacudidela calculada e experiente. José Branco ergue pelo rabo um bacalhau com mais de três quilos, carne de um amarelo quente, um aspeto firme, curtido longamente pelo sal. O proprietário da Bacalhoeira Silva junta ao gesto um comentário: “Este é especial”, e repõe o exemplar sobre outros tantos que descansam nas largas bancas em pedra que percorrem todo o estabelecimento.

BACALHOEIRA SILVA

A Bacalhoeira Silva conta uma história já antiga, percebendo-se mesmo antes das palavras de José Branco nos apresentarem o espaço. Diz-nos o proprietário: “Onde agora funciona a loja existiu, no final de século XIX, um matadouro de gado caprino que abastecia o antigo mercado da Praça da Figueira. O mesmo espaço foi, mais tarde, um talho. Por volta de 1956 funcionava aqui a Manteigaria Silva”. Em 1989 José Branco compra o estabelecimento aos oito sócios e toma em mãos os destinos da loja que, para além do espaço dedicado à venda de bacalhau inclui, na porta ao lado, a mercearia fina.

As portas abrem-se de par em par, expondo a loja para a buliçosa rua Dom Antão de Almada, a espreitar a agitação próxima da Praça da Figueira. Um vislumbre, mesmo que muito distraído, dá a perceber a vocação do estabelecimento. Aqui, no número 1C, o bacalhau é rei e senhor. Em vésperas de Natal os exemplares juntam-se às centenas, agrupados por categorias e preços. O cheiro é intenso, uma mistura de Sal e de Sol. Prateleiras exibem filas organizadas de latas. José Branco esclarece: “São ovas e conservas de bacalhau, em azeite e óleo, embora também tenhamos atum e sardinha”.

BACALHOEIRA SILVA
José Taboaço Branco, proprietário de uma casa que funciona num espaço de comércio centenário.

Tanto bacalhau empurra-nos para uma pergunta óbvia, pois pela breve amostra percebemos que apesar de pertencer todo à espécie Gadus morhua, o bacalhau não é todo igual. Queremos, então, saber o que o diferencia? José Branco, conhecedor, responde: “O bacalhau é classificado pelo peso. Até meio quilo é Miúdo, entre o meio quilo e um quilo é Corrente. Acima do quilo e até aos dois quilos é Crescido. Um bacalhau com dois a três quilos é Grande, com três a quatro quilos é Especial e acima desta designação e calibre entremos num verdadeiro peso-pesado o bacalhau Jumbo”.

O bacalhau acabado de pescar pode chegar aos 30 quilos de peso. Hoje em dia raramente aparecem exemplares tão grandes

O proprietário da Bacalhoeira Silva recorda bacalhaus secos com 12 quilos, enfatizando: “Imagine-se o tamanho do animal ainda no mar, antes da preparação e do estágio em sal. O bacalhau acabado de pescar pode chegar aos 30 quilos de peso. Hoje em dia raramente aparecem exemplares tão grandes”. “Este é um dos sinais que apontam para o fim da espécie?”, perguntamos. Obtemos uma resposta ponderada: “julgo que não. Acredito no bom-senso de quem captura e comercializa o bacalhau”.

BACALHOEIRA SILVA
Manteigaria Silva, espaço contíguo à Bacalhoeira.

José Branco orgulha-se da qualidade do bacalhau que vende na sua loja. A fórmula para fidelizar a clientela não se esgota aí, como nos diz, o proprietário: “Temos um atendimento personalizado, aconselhador, com entregas em casa, quando necessário. Atualmente o cliente é mais exigente, procura o bom bacalhau e os jovens não são exceção”. Por ano, o proprietário da Bacalhoeira Silva vende toneladas de fiel amigo com o pico concentrado, por tradição, no Natal. “Da Bacalhoeira Silva sai bacalhau para todo o Mundo. Os estrangeiros apreciam o bacalhau, assim como os produtos decorrentes. Os italianos, por exemplo, apreciam bastante as ovas”, esclarece o proprietário.

Um bom bacalhau tem um tom amarelo sadio, conferido pelo estágio em sal

O que faz, então, um bom bacalhau? “Diz a tradição que o bacalhau precisa de vento, de frio e de nevoeiro”, refere José Branco, acrescentando aos pressupostos “a qualidade do sal marinho e o tempo”. Fazer um bom bacalhau é um processo demorado que resulta de uma tradição secular. "Antigamente os bacalhoeiros iam para a pesca nos grandes bancos do Atlântico Norte carregados com toneladas de sal marinho. Enquanto durava a faina o bacalhau permanecia em sal. Isto podia prolongar-se até quatro ou cinco meses e era um processo fundamental. É o sal que confere a gordura ao bacalhau”.

José Branco lamenta “o mau bacalhau que se consome atualmente, sem tempo em sal, ultracongelado, entre outros processos para o fazerem parecer de qualidade, sem o ser”.

BACALHOEIRA SILVA
Duas gerações, da esquerda para a direita, Laura, José Branco (filho) e José Branco (pai).

“O consumidor é enganado”, sublinha o nosso interlocutor, e percebe-o logo na demolha. Isto porque uma posta de bom bacalhau vai à água da demolha e sai inteira. “O bacalhau mal curado se for à demolha com a pele para baixo, abre”, refere José Branco. “Um bom bacalhau tem um tom amarelo sadio, conferido pelo estágio em sal. Há, aqui, que saber diferenciar o bacalhau novo do velho, este último com mais de um ano e sabor desagradável”.

Bacalhoeira Silva
Rua D. Antão de Almada, 1C e D, Lisboa
Tel. 213 424 905

José Branco percebe e gosta do bacalhau, fala com entusiasmo do negócio que gere, um entusiasmo que conseguiu passar aos filhos, também de nome José Branco, “o meu braço direito na loja” e a filha Laura, formada em arquitetura, aqui responsável pela área financeira.

Já em 2014 a casa abriu uma loja de sabores portugueses no Mercado da Ribeira por convite da Time Out. Em 2016, a convite do chefe José Avillez, passaram a estar representados no Bairro do Avillez, em pleno Chiado, no coração da cidade.